TRUMP após TRUMP

A ditadura de Trump espreita-nos!

por : Firminiano Maia

Do not go gentle into that good night,
Rage, rage against the dying of the light.
Dylan Thomas

Trump ganhou. Está feito!

Nada há que o possa alterar, exceto talvez adotar o sábio aforismo de Fernando Pessoa e "esperar pelo melhor e prepararmo-nos para o pior". Há que encarar a realidade e não usar de subterfúgios, muito menos iludir-nos quanto ao que se passou.
E o que se passou foi que a democracia sofreu uma pesada derrota, enquanto Trump alcançou uma retumbante e histórica vitória. Opomos, propositadamente, Trump à democracia, pois os democratas perderam – estejam onde estiverem, no Alasca ou no Burkina Faso – e os populistas de todas as cores ganharam um alento extraordinário em todo o mundo.

Insistimos, e tornámos a insistir, na relevância das eleições americanas para o conjunto das nações do planeta, e não vamos pois bater na mesma tecla. Trump possui agora um poder que, acredito, nenhum presidente americano antes dele sequer deteve algo próximo. Ganhou a maioria no colégio eleitoral, o Senado, a Câmara dos Representantes, a maioria dos governadores dos estados e a possibilidade de nomear mais juízes para o Supremo Tribunal de Justiça, o qual, aliás, já controlava.

Embora o negue, dispõe de um programa de governo que seguirá, em maior ou menor grau: o Projeto 2025, que acabará com a América que conhecemos.

A primeira coisa que fará será vingar-se. Se o Projeto 2025 tivesse sido elaborado em Hollywood, chamar-se-ia "A PURGA". Depois, garantirá o controlo do Estado, tutelando diretamente instituições como o Departamento de Justiça e o FBI, que, de alguma independência, passarão a constituir extensões do seu poder pessoal. Tentará o mesmo com os militares, mas aí é provável que não tenha a mesma facilidade. Os militares, tenham a preferência política que tiverem, são mais cuidadosos e tentam evitar que gente imprevisível ponha a mão nos seus "brinquedos".

Há uma réstia de esperança. Não que as coisas corram bem, mas que não corram tão mal. Afinal, Trump é um artista de circo, e os artistas de circo gostam de ouvir a sua própria voz e, acima de tudo, de fazer poses. Trump é um populista, e existe uma ligeira possibilidade de só ter prometido certas coisas pelo efeito das tiradas e do sound bite, sem verdadeiramente sequer pensar em realizá-las ou, mesmo, sem saber como executá-las.

A relação de Trump com a mentira é uma "verdade alternativa". Mas, o facto é que ele venceu. Preparemo-nos para o pior, mas deixemo-lo enterrar-se na própria lama que produziu e espalhou em todas as direções.

Preocupemo-nos agora com o nosso campo, o campo democrático, tal como definido no manifesto da nossa Causa Democrática. Não é possível que os destinos do mundo tenham caído nas mãos de um sujeito deste calibre – inculto, vigarista, mentiroso, fanfarrão e desumano – por mérito próprio. Inclino-me a pensar que as circunstâncias históricas, particularmente da história económica, e a lenta e difusa tomada de consciência da decadência do Império Americano tenham influenciado as massas ao ponto de votarem num indivíduo que se deveria sentar numa sala retangular e gradeada, em vez da Sala Oval.

A grande responsabilidade advém das mudanças liberais (em economia) introduzidas nos anos 80 por Reagan e Thatcher e da incapacidade das democracias de resolverem os seus problemas, por "doenças" do sistema partidário, negligência, falta de coragem para enfrentar os problemas que foram surgindo, ganância, entre outros. O momento é grave, mas não é desesperado. As democracias ainda subsistem. Embora a tendência seja para as transfigurar de liberais em iliberais, pela mão do populismo internacional, ainda possuem energia, força e aceitação popular suficiente para poderem resistir.

Corrigindo Lenine, diria que é hora de dar um passo atrás para dar dois passos em frente. O passo atrás é necessário. Temos que perceber onde errámos, onde fomos ingénuos e como – sim, fomos nós, os democratas – criámos, pela inércia, negligência e cobardia política, as condições para o renascimento deste aleijão intelectual e político donde brota o populismo. Foquemo-nos no nosso campo, diagnostiquemos os problemas, identifiquemos os erros, encontremos contramedidas e, se assim fizermos, em certo ponto do percurso estaremos aptos a dar dois passos em frente e a varrer a peste populista das nossas sociedades.

Como adepto de futebol, a coisa que mais me irritava era quando depois de uma derrota por 5-0, o treinador vinha inevitavelmente dizer: “Agora é erguer a cabeça, continuar a trabalhar e refletir no que aconteceu”. De repente ganhei grande respeito pelo treinador. Dei por mim a pensar exatamente o mesmo!
Erguer a cabeça, trabalhar e refletir ( a ordem é arbitrária). A cabeça já ergui, o trabalho já comecei, para refletir é que preciso de companhia.
Consciente que a quantidade enorme de questões sobre as quais nos devemos debruçar, contribuo com as três que se seguem que espero ajudem a estimular a reflexão e criatividade e o espírito de análise dos democratas que eventualmente nos leiam.

1.ª Questão: A dicotomia esquerda-direita é válida, pois ambas transportam valores, histórias e tradições distintas com as quais os cidadãos se identificam. Mas a sociedade mudou e a política com ela.

A principal contradição política já não é entre esquerda e direita, mas sim entre Populismo e Democracia.

A estratégia populista confunde o cidadão, vulgarizando a velha e até aqui segura contradição. Assim, tanto pregam por medidas típicas de extrema-direita como por medidas que qualquer grupo de extrema-esquerda acolheria no seu programa. Ora, os populistas assumem, sem escrúpulos, reivindicações típicas de esquerda, pois a sua natureza não é construir um modelo de sociedade, mas sim destruir o existente. O populismo caracteriza-se por… dizer coisas! E que coisas são essas? Quaisquer, desde que sirvam os seus interesses. Isto é, dizem o que pensam que o povo quer ouvir. Mas há que ter em mente que o objetivo final do populismo é a destruição do Estado de Direito. Esquerda e direita existem e estão vivas, mas, na arena da política, defrontam-se agora o populismo e a democracia liberal.

2.ª Questão: Trump apresentou-se aos americanos com dois temas principais e algumas fábulas: a imigração, a inflação e a guerra. Trump mentiu, enganou, engasgou-se, contradisse-se, mas passou sempre a mesma mensagem. Quem não receia a guerra? Quem não sente as dificuldades da vida com o aumento da inflação? Quem, inclusive entre os imigrantes ilegais, não teme a concorrência de outros que, desesperados, aceitam fazer as mesmas e piores tarefas em condições e custos mais baixos?

Kamala Harris pugnou pela democracia e alertou para o perigo que o sistema democrático enfrentava com Trump. Alertou para o facto de o ex-presidente ser fascista, pugnou pelos direitos das mulheres e pelo direito ao aborto, pelo fim da discriminação de minorias, pela comunidade LGTB, entre outros. Kamala tentou ser séria, e os temas da sua campanha foram, em geral, bem defendidos e importantes. Porém, acabou por descobrir amargamente que o cidadão prefere uma vida mais barata a viver em democracia, que entre imigrantes existe uma concorrência feroz, que é indiferente classificar um presidente de racista, mas é motivo de indignação classificar de violentos bandos suprematistas armados, que a comunidade LGTB agradece a defesa, mas apenas os seus membros, que o aborto interessa às mulheres, mas a inflação, que as pode deixar sem teto e incapazes de alimentar a família, interessa-lhes muito mais. Dados os interesses distintos entre grupos de democratas, não conseguiu apresentar uma política clara para a imigração e, sobretudo, pela mesma razão, não apresentou uma política económica consolidada, mas apenas algumas promessas avulsas.

3.ª Questão: Vale a pena um partido apresentar-se ao eleitorado como defensor de causas verticais ou identitárias e esperar que o seu somatório final se apresente coerente aos olhos do povo, ou é melhor apresentar-se como defensor de causas transversais?

Se a resposta que encontrarmos for enfatizar os temas transversais no campo democrático, ainda se colocam duas questões:

Como tratar os temas identitários e o que fazer com os temas transversais lançados pelos populistas? Estamos convictos de que ambos devem merecer a atenção dos democratas:

Não abandonando os temas identitários, essenciais para uma democracia desenvolvida, mas não permitindo que estes se sobreponham à identidade própria da proposta democrática; A Identidade democrática deve ser suficientemente forte para não estar à mercê de infindáveis discussões entre diferentes grupos com diferentes interesses

Não deixando a discussão pública de temas fraturantes nas mãos dos populistas, varrendo-os para debaixo do tapete como se não existissem ou porque contrariam de alguma forma os interesses deste ou daquele grupo.

Os temas fraturantes, devem ter origem no campo democrático colocando na discussão pública temas como as ligações internacionais das organizações populistas ou o seu financiamento, de forma a retirar-lhes a iniciativa no campo político e mediático, colocando-os à defesa e não ao ataque como até agora tem acontecido.

Trump chegou. Os tempos serão difíceis, mas haja ânimo. O mundo não acabou, e temos de começar o trabalho para a época pós-trumpista num novo mundo, daqui a quatro curtos anos.

Os presidentes dos EUA, em geral, são obcecados pelo tema do seu legado. Trump merecerá uma nota de rodapé na história e um epitáfio:

Nota de pé de Pagina:
“Nunca esteve aqui nenhum mais fantástico que EU. Ass. Donald ”

Epitáfio: “The show didn’t went on”!

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