No dia 29 de setembro, o Dr. Ventura, o Chega, o “pacifista” Mário Machado e outros de perfil semelhante organizaram uma manifestação “anti-imigração”. Dada a afinidade ideológica com os partidos irmãos europeus – algo de que o Chega se orgulha – a minha admiração pela argúcia do Dr. Ventura, pela sua capacidade de manobra política e, vá lá, pelas subtis nuances das suas convicções, atingiu o auge.
Geert Wilders, na Holanda, Nigel Farage, no Reino Unido, Marine Le Pen, em França, Viktor Orbán, na Hungria, e outros, são todos, sem exceção, membros da família anti-imigração.
Claro que, quando os portugueses deixam Portugal, não são imigrantes; são emigrantes. Só se tornam imigrantes quando chegam à Alemanha, França, Reino Unido ou Hungria.
Nessa altura, já o Dr. Ventura poderá, sem qualquer remorso, afirmar que temos imigrantes suficientes em Portugal e que os outros países devem lidar com os seus próprios imigrantes – mesmo que esses sejam portugueses e até de pele clara.
Parece que o Sr. Orbán ou o Sr. Salvini têm todo o direito de impedir que o Dr. Ventura entre nas suas fronteiras. Afinal, mesmo sendo amigo, ele não deixa de ser um imigrante e deve ser expulso assim que o seu assunto estiver tratado.
Emigrante à partida, imigrante à chegada, pária durante a viagem, retornado ao reentrar em Portugal.
Repito: gerir estas complexidades exige uma sensibilidade requintada. Este é o meu primeiro motivo de admiração e veneração.
O segundo motivo é a sua disponibilidade para o martírio em nome da causa e, se quisermos ser cínicos, em nome dos votos.
Vejamos a manifestação de dia 29. A coragem esteve na base do planeamento do percurso: Avenida Almirante Reis – Anjos/Rua da Palma – Martim Moniz e Rossio.
Segundo Ventura, 3.000 pessoas participaram. Tal como os 300 espartanos de Leônidas, estavam dispostos a atravessar o território "inimigo", precisamente pelas áreas mais habitadas por imigrantes.
Claro que a polícia ajudou a manter a ordem. Segundo relatos, dois arruaceiros que gritaram “fascismo nunca mais” à passagem da comitiva foram repetidamente agredidos por pacíficos manifestantes e depois detidos pela PSP. E com toda a razão, pois proclamar mentiras em alta voz perturba a tranquilidade pública.
É ainda possível que os imigrantes sejam passivos ou, sendo mais cínico, talvez muitos deles, estando nos Anjos à porta da AIMA para tentarem a legalização, temessem ser deportados ou coisa pior.
Mas uma hipótese mais cínica ainda me tem atormentado desde que, durante a campanha eleitoral, o ruído de uma moto foi interpretado como uma tentativa de assassinato contra o Dr. Ventura.
Será que o Dr. Ventura procura o martírio? E, se sim, porquê?
Nos workshops da extrema-direita populista europeia, dos quais Ventura é assíduo, o martírio será valorizado para fins políticos, tal como nas madraças islâmicas é uma forma de agradar a Deus e receber recompensas espirituais (ou eleitorais, no caso de Ventura)?
Claro que, no Ocidente, o radicalismo já não é o dos séculos XII a XVI. Moderou-se, e já não exige a morte. O martírio eleitoral pode ser alcançado com um tabefe bem assente, desde que a outra face seja oferecida para tratamento igual; ou por uma boa paulada ou murro; ou, como vimos, até pelo escape de uma mota.
No fundo, a questão é a seguinte: O Chega cometeu deliberadamente um ato provocatório ao definir um percurso que passava pelas zonas de maior concentração de imigrantes, proferindo ameaças, provocações e ofensas, na esperança de provocar confrontos? A resposta só pode ser afirmativa dado ser do conhecimento público, terem sido convocadas contramanifestações para os mesmas horas e locais. Sim. O Dr. Ventura conhece a cartilha europeia populistas de extrema direita, e conta nas suas hostes, com especialistas em provocação de distúrbios.
Pergunta-se : E para quê?
Resposta: Para “provar” que os imigrantes são uma ameaça, agressores e desordeiros e, uma vez criada a desordem, apresentar os seus próprios mártires à comiseração dos eleitores. Mais, com o objetivo de criar a perceção de um inimigo que justifique a sua própria existência e vazio programático, e, provocados os desacatos, forjar o mito dos seus próprios “heróis”.
Para que não me acusem de ser centrista, direitista, esquerdista ou radical de qualquer “ismo”, deixo aqui uma lista de figuras políticas que, após vitimados por agressões, insultos ou tentativas de assassinato (alguns bem-sucedidos), beneficiaram de reforços eleitorais ou de aumentos de popularidade.
· Franklin D. Roosevelt – Tentativa de assassinato em 1933; eleito em 1936.
· John F. Kennedy – Tentativa de assassinato em 1961; assassinado em 1963.
· Ronald Reagan – Tentativa de assassinato em 1981; reeleito em 1984.
· Yitzhak Rabin – Assassinado em 1995.
· Julius Nyerere (Tanzânia) – Venceu eleições após difamação.
· Jorge Gaitán (Colômbia) – Venceu eleições; assassinado em 1948.
· Angela Merkel – Eleita várias vezes após insultos e agressões.
· Evo Morales (Bolívia) – Reeleito após tentativa de golpe em 2009.
· Lula da Silva – Eleito em 2006 após ataques.
· Jair Bolsonaro – Eleito em 2018 após ser esfaqueado.
E em Portugal:
· Mário Soares – Agredido na Marinha Grande; ganhou as eleições.
· Ramalho Eanes – Tiroteio durante a campanha; ganhou as eleições.
Em ambos os casos, os incidentes influenciaram positivamente as suas vitórias.
Nos EUA, o ex-presidente Trump já sobreviveu a duas tentativas de assassinato. Esperemos que não sofra mais nenhuma, pois acreditamos que a política deve ser feita pelo confronto de ideias (mesmo que sejam poucas e más), e não pelo confronto físico.
E por cá? Estará o Dr. Ventura à procura do seu próprio martírio?
Por Humberto Borges
Ventura e a atração pelo martírio
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