O Mito da Herança Soviética
A ideia de que a Rússia pós-soviética é a "herdeira" da ideologia da União Soviética (URSS) é um equívoco comum, alimentado por discursos simplistas e uma visão reducionista da história recente do país. De facto, a Rússia de hoje, sob a liderança de Vladimir Putin, dista muito da ideologia marxista-leninista que caracterizava a União Soviética. Em vez disso, a Rússia contemporânea é, em muitos aspetos, herdeira do capitalismo selvagem que floresceu após o colapso da URSS, com fortes raízes nas políticas económicas neoliberais promovidas pelo Ocidente, particularmente pelos economistas da Escola de Chicago, na década de 1990.
por: Aharon Pereira
Capitalismo Selvagem - A versão mais destrutiva e poluente do capitalismo
O Fim da URSS e a Transição para o Capitalismo Selvagem
Com o colapso da União Soviética em 1991, a Rússia, sob a liderança de Boris Ieltsin, passou de uma economia planificada para uma economia de mercado. Este processo de transição foi marcado por uma série de reformas radicais, que foram orientadas por um grupo de economistas, conhecidos como os "Chicago Boys", que influenciaram a política económica russa no período pós-soviético. Esses economistas eram seguidores do economista neoliberal Milton Friedman, cuja Escola de Chicago defendia o capitalismo de mercado livre sem a intervenção do Estado.
A introdução de reformas económicas como a privatização em massa, a liberalização dos preços e a desregulamentação, sob a orientação de conselheiros ocidentais, levou a uma concentração massiva de riqueza nas mãos de uma pequena elite. Os oligarcas russos, que acumularam vastas fortunas e controlaram os sectores estratégicos da economia, tornaram-se uma classe dominante. Ao mesmo tempo, a maioria da população enfrentou uma queda acentuada no seu nível de vida, com aumento da pobreza, desemprego e uma crise económica profunda. O período de "capitalismo selvagem" dos anos 1990 foi marcado por uma enorme desigualdade social, corrupção e uma escassa rede de proteção
O Papel da Escola de Chicago
A influência da Escola de Chicago na Rússia foi direta e profunda. Na década de 1990, economistas formados ou alinhados com a Escola de Chicago foram chamados a ajudar na implementação das reformas económicas. O nome mais conhecido desse grupo é Andrei Shleifer, um economista da Universidade de Harvard, que colaborou com os conselheiros de Ieltsin na transformação da economia russa.
Eles defenderam o "choque de mercado", ou seja, uma transição rápida de uma economia socialista para uma economia de mercado, sem um planeamento gradual. A ideia era criar um sistema de mercado competitivo, que permitisse a ascensão de empresas privadas e o desaparecimento da economia estatal.
No entanto, essas reformas causaram uma grande devastação económica e social. A Rússia experimentou uma hiperinflação, a queda do valor da moeda, o aumento do desemprego e o colapso das infraestruturas industriais. Enquanto isso, os novos oligarcas, com a ajuda de políticos corruptos e uma rede de contactos com as elites russas, adquiriram grandes sectores da economia a preços irrisórios.
O que é um oligarca russo
Um oligarca russo é um indivíduo extremamente rico que acumulou vastos recursos, muitas vezes de forma corrupta e controversa, durante o processo de privatização que ocorreu após o colapso da União Soviética na década de 1990. O termo refere-se, geralmente, a uma elite financeira que possui grande influência política e económica na Rússia. Características dos oligarcas russos:
Origem da Riqueza:
Muitos enriqueceram ao adquirir, a preços baixos, ativos estatais valiosos, como empresas de petróleo, gás, mineração e telecomunicações, durante as caóticas reformas econômicas lideradas por Boris Ieltsin.
O processo de privatização foi frequentemente marcado por corrupção e favoritismo.
Relação com o Poder Político:
Durante o governo de Ieltsin, os oligarcas ganharam imensa influência, ajudando a moldar políticas e a sustentar o poder político em troca de benefícios económicos.
No governo de Vladimir Putin, a relação mudou. Putin consolidou o poder, exigindo lealdade dos oligarcas e controlando aqueles que representavam uma ameaça ao seu regime. Alguns, como Mikhail Khodorkovsky, foram presos ou exilados.
Concentração de Poder e Riqueza:
Os oligarcas detêm grandes fortunas, muitas vezes colocadas em bancos estrangeiros, imóveis luxuosos ou outros investimentos fora da Rússia, contribuindo para uma desigualdade extrema no país.
Além do poder económico, possuem influência em meios de comunicação, desportos e arte, utilizando esses canais para projetar poder e prestígio.
Impacto Internacional:
Com o tempo, muitos oligarcas diversificaram os seus investimentos globalmente, comprando propriedades, clubes desportivos e empresas, especialmente no Ocidente.
Após a invasão da Ucrânia em 2022, muitos foram alvo de sanções ocidentais, que congelaram ativos e limitaram as suas atividades.
Os oligarcas russos são frequentemente vistos como símbolos da desigualdade e da relação entre negócios e poder político, mas também refletem as complexidades de um sistema que emergiu de uma transição abrupta para o capitalismo. No Ocidente seriam chamados Gangsters ou Mafiosos.
Iates - Um dos símbolos dos oligarcas russos
Putin e a Continuidade do Capitalismo de Mercado
Apesar da retórica nacionalista e patriótica do regime de Putin, que frequentemente evoca o passado soviético e o poder imperial da Rússia, o modelo económico russo pós-soviético é, na sua essência, uma continuidade do capitalismo neoliberal, com um forte foco em sectores como a energia, a mineração e as indústrias de armamento. O governo de Putin tem incentivado uma economia de mercado, mas com um forte controlo estatal sobre sectores-chave, como o gás e o petróleo, e uma gestão oligárquica que mantém as grandes empresas nas mãos de um número reduzido de elites próximas ao Kremlin.
Embora Putin tenha afastado a influência ocidental em várias áreas, especialmente na política externa, a Rússia de hoje continua a ser uma economia, com algumas das características de capitalismo de mercado selvagem: grandes desigualdades sociais, corrupção endémica, e uma classe empresarial profundamente ligada ao poder político. A diferença é que, ao contrário da Rússia nos anos 90, o poder do Estado está mais consolidado em Putin, que utiliza o controlo das grandes empresas para manter a sua base de poder e garantir a estabilidade interna, mas sem alterar fundamentalmente o sistema económico neoliberal.
Cultiva a imagem dos Czares e não dos lideres Soviéticos
A ideia de que a Rússia é herdeira da ideologia da União Soviética é, portanto, um mito. A ideologia soviética centrava-se na planificação económica e no controlo estatal absoluto sobre os meios de produção. numa tentativa de criar uma sociedade sem classes, algo que não tem paralelo na Rússia contemporânea. A Rússia pós-soviética, ao contrário, abraçou uma economia de mercado e uma estrutura oligárquica, que privilegia a concentração de poder e riqueza nas mãos de uma elite restrita. Portanto, a verdadeira herança da Rússia moderna é o capitalismo selvagem da era pós-soviética, que em muitos aspetos é mais próximo do modelo económico neoliberal promovido por economistas como Milton Friedman do que do modelo socialista da União Soviética.
O mito de que a Rússia contemporânea é herdeira da ideologia da União Soviética também tem presença em Portugal, embora com uma intensidade variável, dependendo das interpretações políticas e das narrativas históricas que circulam no país. Este equívoco pode ser encontrado tanto em alguns setores da política, como em determinados círculos académicos ou mediáticos, onde a Rússia é por vezes vista através da lente da sua história soviética, sem uma devida análise da sua transformação pós-1991.
A Rússia pós-soviética: Ieltsin passa o testemunho a Putin. O legado de Ieltsin persiste ainda hoje
A perceção da Rússia em Portugal
A Perceção da Rússia Como Herdeira da União Soviética
Em Portugal, particularmente entre alguns partidos, existe uma tendência a ver a Rússia de Vladimir Putin como mantendo laços com a ideologia comunista. Isso é alimentado por elementos da política externa russa, que frequentemente invoca orgulho pela história soviética, pela resistência ao Ocidente e pela tentativa de restaurar uma certa imagem de grandeza e poder da era soviética. Além disso, o facto de Putin ter vindo de uma formação no KGB e de ter utilizado elementos de controle estatal sobre a economia e a sociedade, como na era soviética, também alimenta essa visão.
No entanto, a realidade da Rússia contemporânea é bem diferente da União Soviética. O regime de Putin, apesar de ser autoritário e de manter o controlo sobre a sociedade, não é um regime socialista, nem planeado centralmente como a URSS. A economia russa é altamente dependente de sectores de mercado, especialmente das indústrias do petróleo e gás, e foi moldada por políticas neoliberais desde a década de 1990, após o colapso da União Soviética. A Rússia pós-soviética é, na sua essência, uma economia de mercado oligárquica, que pode ser melhor descrita como herdeira do capitalismo selvagem que foi imposto pelos "Chicago Boys" e pelos economistas ocidentais durante a transição do socialismo para o mercado livre, na década de 1990.
Contudo, com o colapso da URSS em 1991 e a subsequente transformação da Rússia numa economia de mercado, o imaginário coletivo de muitos portugueses não acompanhou a rápida mudança do país. Muitos mantiveram-se presos à ideia de uma herança soviética, vista frequentemente através de um prisma anticapitalista, e de um modelo de economia socialista. Este mito de uma continuidade ideológica entre a Rússia e a URSS, ou de uma ligação estreita com as ideias do socialismo, ainda persiste em algumas narrativas atuais.
A Confusão Ideológica e o Regresso ao Nacionalismo
Outro fator que alimenta o mito de que a Rússia é herdeira da ideologia soviética em Portugal é a retórica nacionalista e antiocidental que Putin tem usado ao longo do seu governo. Muitos interpretam as políticas de Putin como uma continuação da defesa da "soberania nacional" e da oposição àquilo que é visto como uma imposição do neoliberalismo ocidental, características que podem ser confundidas com os discursos da era soviética. Putin recorre frequentemente ao nacionalismo e à ideia de restaurar o poder e a influência da Rússia no palco mundial, algo que pode remeter para as memórias de grandeza da URSS.
Contudo, este nacionalismo de Putin não tem nada a ver com os princípios ideológicos socialistas ou comunistas da União Soviética. Em vez disso, é uma forma de "nacionalismo autoritário", que utiliza a nostalgia pela União Soviética para consolidar o poder, mas sem qualquer intenção de recuperar o sistema socialista planificado. A retórica de Putin é mais alinhada com uma versão moderna do imperialismo russo, onde a Rússia procura aumentar a sua influência, especialmente nas ex-repúblicas soviéticas, baseando -se numa economia que favorece o capitalismo e as elites empresariais, e não a redistribuição socialista.
O Impacto nas Perceções Públicas
Em Portugal, este mito sobre a Rússia e a herança soviética pode gerar uma visão distorcida da política russa, tanto à esquerda como à direita. Para alguns setores da esquerda, a Rússia de Putin é vista como uma espécie de alternativa ao capitalismo ocidental. No entanto, este olhar ignora o facto de que a economia russa é baseada num sistema oligárquico capitalista, em que o Estado e as grandes empresas privadas estão profundamente interligados.
Por outro lado, na direita portuguesa, a Rússia é vista como uma força autoritária que ressurge no contexto de uma geopolítica global instável e em transformação. Alimenta ainda a ideia que a Rússia está a "ressuscitar" os princípios da União Soviética, quando na realidade isso não corresponde nem à realidade económica e nem à política do país.
Conclusão
Em suma, o mito de que a Rússia de Putin é herdeira da ideologia da União Soviética é um equívoco que persiste em Portugal devido a uma leitura superficial e distorcida da história russa. A Rússia contemporânea não é uma continuação da URSS, mas sim herdeira de um capitalismo de mercado neoliberal, com características oligárquicas e de forte controlo estatal, que remonta à transição das reformas de Boris Ieltsin nos anos 1990. Esse mito é alimentado por uma narrativa que mistura nacionalismo, nostalgia soviética e uma visão crítica do Ocidente, mas que ignora a verdadeira natureza da economia russa atual.
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