"China: O Dragão Autoritário”
por Simon Ben-David
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Texto #4
Um País - Dois Sistemas
A China adota oficialmente a política de "um país, dois sistemas", um conceito originalmente desenvolvido para gerir as regiões administrativas especiais de Hong Kong e Macau, mas que também se estende, de forma indireta, às zonas económicas especiais no continente e à questão de Taiwan (Taipé). Esta fórmula permite a coexistência de diferentes sistemas económicos e sociais sob a soberania da República Popular da China. É curioso como, num Estado governado por um partido que se define como comunista, se normaliza a presença de uma economia capitalista. Muitos críticos, argumentam que esta fórmula é insustentável e que as suas contradições acabarão por se manifestar de forma fatal e, possivelmente, violenta. Contudo, o futuro permanece incerto. O que sabemos é que, até a China "inventar" esta ideia, o capitalismo era visto como antagónico ao socialismo, um sistema de transição para o comunismo. Por isso dizemos que é uma simplificação classificar a China atual como uma simples ditadura comunista, pois a realidade é muito mais complexa.
Em que consiste "um país, dois sistemas":
China Continental: A China continental segue um modelo de socialismo com características chinesas, onde o Partido Comunista Chinês (PCC) controla o poder político. A economia mistura setores estatais com privados, com forte intervenção do Estado, mas também uma crescente abertura ao mercado. Embora o sistema político seja socialista, a economia apresenta muitas características capitalistas, sobretudo em zonas especiais.
Zonas Económicas Especiais (ZEEs): Dentro do próprio território continental, existem zonas económicas especiais, como Shenzhen, Xangai e Zhuhai, criadas nas décadas de 1980 e 1990 para atrair investimentos estrangeiros e estimular o crescimento económico. Nessas zonas, são aplicadas regras económicas mais flexíveis, com incentivos para o capital estrangeiro e uma orientação capitalista, enquanto o sistema socialista continua a vigorar no resto do país.
Hong Kong e Macau: As regiões administrativas especiais de Hong Kong (retornada à China em 1997) e Macau (retornada em 1999) mantêm sistemas económicos e jurídicos capitalistas, com uma autonomia significativa face à China continental. Embora estejam sob soberania chinesa, desfrutam de liberdades civis, liberdade económica e sistemas judiciais distintos, garantidos por 50 anos após a sua reintegração. A liberdade de expressão e de imprensa, por exemplo, é muito maior nestas regiões do que no resto da China.
Taiwan (Taipé): Embora Taiwan seja governada de forma independente desde o fim da guerra civil chinesa em 1949, a China considera a ilha uma parte do seu território e defende a sua eventual reunificação sob o princípio de "um país, dois sistemas". A fórmula é sugerida para que Taiwan mantenha o seu sistema democrático e capitalista, enquanto seria formalmente reintegrada na soberania chinesa. No entanto, este conceito é amplamente rejeitado pela população e governo de Taiwan.
O princípio de "um país, dois sistemas" permite à China manter a sua soberania e controlo político, enquanto e que certas regiões ou zonas mantenham sistemas económicos capitalistas e uma maior autonomia. Esta abordagem tem funcionado em Hong Kong e Macau, mas encontra resistência em Taiwan e tem limites claros nas zonas económicas especiais da China continental, que são mais orientadas pelo mercado, mas sob o controlo do Partido Comunista Chinês.
O princípio de "um país, dois sistemas" encerra contradições profundas, especialmente à medida que a China se torna uma superpotência económica e política. Este conceito, idealizado para manter a soberania chinesa enquanto preserva diferentes sistemas económicos e políticos, enfrenta desafios complexos que podem gerar tensões tanto internas como externas. Abaixo estão algumas das principais contradições e as suas potenciais consequências futuras.
1. Coexistência de Sistemas Políticos Opostos
Uma das contradições centrais é a coexistência de um sistema socialista autoritário no continente chinês e sistemas capitalistas liberais em Hong Kong e Macau. No continente, o Partido Comunista Chinês (PCC) exerce controlo absoluto, com repressão de dissidência, censura e limitações a direitos civis. Em contraste, as regiões administrativas especiais (RAEs) mantêm liberdades civis consideráveis e um sistema judicial independente.
Futuro: À medida que o prazo de 50 anos se aproxima (por volta de 2047 para Hong Kong, e 2049 para Macau), pode haver uma erosão gradual das liberdades nestas regiões, como já observado em Hong Kong com a imposição da Lei de Segurança Nacional em 2020. A crescente influência do PCC pode gerar protestos e resistências locais, afetando a estabilidade social e económica. No limite, pode haver migração em massa ou perda de confiança internacional.
2. Tensões entre Autonomia e Controlo Central
Embora a Hong Kong e Macau tenham sido prometidas um elevado grau de autonomia, nos últimos anos tem-se observado uma redução significativa dessa autonomia, com a imposição de políticas e leis vindas de Pequim que contrariam o espírito original do acordo. A centralização do poder pelo PCC, que não tolera desafios à sua autoridade, entra em choque direto com a promessa de autonomia.
Futuro: Se o governo central continuar a impor leis restritivas e a sufocar a autonomia local, especialmente em Hong Kong, o modelo "um país, dois sistemas" pode desmoronar antes do fim do período de transição. Isto pode levar a uma crise política, protestos violentos, sanções internacionais e uma maior desconfiança da comunidade global em relação à China.
3. Contradições Económicas nas Zonas Económicas Especiais (ZEEs)
As zonas económicas especiais (ZEEs) no continente, como Shenzhen, são o motor do crescimento económico da China, permitindo práticas capitalistas e atraindo investimentos estrangeiros. No entanto, estas áreas ainda estão sujeitas ao controlo do Estado e do PCC, criando uma tensão entre a lógica do mercado livre e a natureza centralizadora do governo.
Futuro: O sucesso económico destas zonas depende da flexibilidade e da abertura ao mercado, mas o controlo centralizado pode limitar o potencial de inovação e crescimento. Se o Estado apertar o controlo sobre as empresas privadas (como se viu com a repressão do setor tecnológico), a confiança dos investidores pode cair, e as ZEEs podem perder o seu dinamismo económico. Esta contradição pode afetar o crescimento a longo prazo da China.
4. Taiwan: A Contradição Não Resolvida
A aplicação do princípio "um país, dois sistemas" a Taiwan é altamente contestada. Taiwan é uma democracia funcional e a maioria dos seus cidadãos opõe-se à reunificação com a China nos termos que Pequim define. A crescente repressão em Hong Kong minou ainda mais a confiança dos taiwaneses na viabilidade deste modelo.
Futuro: A resistência de Taiwan à reunificação sob "um país, dois sistemas" pode levar a uma escalada de tensões entre Taiwan e a China continental, com o risco de confronto militar. A crescente influência da China sobre o cenário global e a determinação de reunificar Taiwan podem levar a uma pressão diplomática e, no pior cenário, a um conflito armado que teria repercussões devastadoras na Ásia e a nível global.
5. Impacto Internacional e Contradições com o Direito Internacional
O modelo "um país, dois sistemas" é também um ponto de tensão na arena internacional. Muitos países e organizações defendem a autodeterminação de regiões como Hong Kong, Macau e Taiwan e criticam a crescente repressão chinesa. As contradições entre as promessas de autonomia e a realidade autoritária em Hong Kong levaram a sanções por parte de países ocidentais e à diminuição da confiança na promessa de Pequim.
Futuro: A continuação destas contradições pode aumentar o isolamento diplomático da China em determinadas áreas, embora continue a ganhar aliados em regiões como a África e a América Latina. O modelo pode tornar-se um ponto de contenção nas relações entre a China e o Ocidente, resultando em tensões diplomáticas e comerciais mais profundas.
Potenciais Consequências
As contradições inerentes ao princípio de "um país, dois sistemas" podem conduzir a uma maior centralização do poder por parte da China, à repressão de liberdades civis em Hong Kong e Macau, e ao aumento das tensões com Taiwan. No plano interno, o modelo pode perder a sua eficácia económica e enfraquecer a atratividade das ZEEs, limitando o potencial de crescimento da China. Internacionalmente, a deterioração do "um país, dois sistemas" pode isolar ainda mais a China do Ocidente, polarizando as alianças globais. Em última instância, estas contradições podem desencadear instabilidade tanto dentro como fora da China, criando desafios significativos para o governo chinês no futuro.
As Relações China - Portugal
As declarações de políticos portugueses sobre a China têm se pautado por posições diplomáticas e estratégicas, mas também têm revelado ambiguidade e falta de clareza.
Diplomacia e Cooperação Económica
Por um lado, há um forte foco nas relações económicas. Muitos políticos portugueses têm elogiado as oportunidades criadas pela cooperação com a China, particularmente no comércio e investimento. Dizem que as duas nações têm colaborado em áreas como infraestruturas, ciência, e tecnologia, com um interesse crescente em áreas como a mobilidade elétrica e a economia digital.
É factual que a China investiu em setores-chave da economia portuguesa, incluindo a energia e as telecomunicações e serviços, o que levou os políticos a verem o relacionamento de forma pragmática e economicamente benéfica. A justeza de muitas destas afirmações é duvidosa, pois o Estado Português foi substituído pela presença do Estado Chinês na estrutura acionista das empresas durante o período da Troika, sem outros benefícios para Portugal.
Falta de Discussão Sobre Direitos Humanos e Autoritarismo
No entanto, muitos críticos apontam que os políticos portugueses, ao enfatizarem os benefícios económicos, tendem a evitar questões mais problemáticas, como as violações de direitos humanos na China. Temas como a repressão de minorias, o controlo autoritário do Partido Comunista Chinês (PCC) e a situação de Hong Kong raramente são abordados publicamente pelos principais líderes políticos portugueses. Alguns observadores sugerem que essa omissão reflete uma tentativa de Portugal em não confrontar um parceiro económico importante, evitando conflitos diplomáticos.
Desconhecimento e Superficialidade
A crítica mais comum em círculos políticos e académicos é que muitos políticos portugueses não compreendem completamente a complexidade política da China. Por exemplo, enquanto elogiam a modernização e o crescimento económico chinês, não abordam suficientemente a realidade do autoritarismo do PCC. A influência da China sobre Portugal parece ser subestimada, especialmente em áreas como a tecnologia de telecomunicações (com a Huawei) e as infraestruturas críticas. A falta de uma abordagem mais crítica e informada, além de um excesso de pragmatismo, leva alguns a acusar os políticos portugueses de estarem a ser "ingénuos" face às estratégias de influência global da China.
Futuro Incerto: Riscos de Dependência Económica
A crescente dependência de investimentos chineses em setores estratégicos pode criar vulnerabilidades políticas no futuro. Alguns analistas alertam que essa dependência pode tornar Portugal menos capaz de criticar o regime chinês, especialmente em fóruns internacionais onde a UE tenta equilibrar a relação com a China de forma mais justa.
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Em suma, a relação de Portugal com a China tem sido marcada pelos benefícios económicos, notando-se superficialidade no tratamento das questões políticas mais sensíveis, como os direitos humanos e a governança autoritária do PCC. A falta de discussão pública crítica sobre o impacto a longo prazo desta relação é vista como um défice de conhecimento e debate político no país.
Portugal não é um país qualquer, (ou pelo menos não devia ser), no relacionamento com a China. Como ex-colonizador e administrador de Macau deveria ter outro conhecimento sobre a realidade da política naquele território. De notar pelo menos durante 50 anos ou seja até 2049 o ordenamento político jurídico e administrativo de Macau mantém forte influência do que foi no passado a administração portuguesa. Quem beneficiou e beneficia com esta presença portuguesa é Pequim que à data da passagem de Hong Kong e Macau para a China, não tinha experiência alguma de como estas funções se passavam no Ocidente capitalista que queria copiar.
O que aconteceu em Macau com a transferência de soberania para Pequim foi o seguinte:
Ordenamento político
Macau tem a sua própria constituição, chamada Lei Básica de Macau, que define o sistema político e as relações com a China.
O Chefe do Executivo é o mais alto cargo no governo de Macau e é eleito por um colégio eleitoral com representação de diversos setores da sociedade, mas a escolha final é aprovada pelo governo central chinês. Este sistema é uma modificação em relação ao período colonial, onde o governador de Macau era nomeado por Portugal.
A Assembleia Legislativa de Macau tem 33 membros, dos quais alguns são eleitos diretamente pela população, outros são eleitos por sufrágio indireto e os restantes são nomeados pelo Chefe do Executivo.
Sistema jurídico
Macau manteve o sistema jurídico baseado no Direito Civil, inspirado no código e na tradição portuguesa. Embora a jurisdição final esteja nas mãos do Supremo Tribunal Popular da China, Macau tem os seus próprios tribunais e um sistema judicial autónomo, que é muito semelhante ao português. Os advogados portugueses podem exercer a sua profissão em Macau,
A língua portuguesa continua a ser uma das línguas oficiais de Macau, juntamente com o cantonês. Este é um legado direto da época colonial, preservado para assegurar continuidade e estabilidade.
Administração
O sistema administrativo de Macau também permaneceu relativamente semelhante, com alterações no topo da hierarquia para refletir a nova soberania. Muitos dos funcionários que trabalhavam durante a época colonial continuaram nos seus cargos, e a estrutura administrativa foi preservada para evitar uma transição abrupta.
Contudo, o papel do governo central chinês tornou-se mais relevante, particularmente nas áreas de defesa e relações exteriores, que são controladas diretamente por Pequim.
Conclusão
Muito gostaríamos que o leitor deste quarto artigo ficasse sobretudo com a ideia que a China atual é duma complexidade enorme em todos os aspetos e que classificar a China como país comunista é uma visão muito curta e limitada. Que é uma ditadura regulada pelo PCC, não restam dúvidas. Quanto ao regime que rege a sua economia, tudo se assemelha muito mais ao Capitalismo, com taxas de consumo e desperdício altíssimas sobretudo, nas chamadas, zonas especiais e em Macau e Hong Kong. A China possui atualmente uma das maiores concentrações de multimilionários do mundo, o que diz bem a quem pertencem os meios de produção. Claro devem, e convém, pertencer ao PCC !
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