por Firminiano Maia

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A Ideia que ocupa a Mente que comanda a Mão que empunha o Machado

"A MENTE"

Texto #2

Este é o segundo artigo de uma série de quatro textos sobre a ideologia euroasianista e as suas consequências práticas enquanto ideologia de regime na Federação Russa. Salientamos que o euroasianismo não é oficialmente assumido como a ideologia do Estado Russo. Contudo, está presente em todos os níveis da administração do Estado, do ensino, do aparelho militar, e da comunicação social estatal e em meios privados sob controlo político. Prova disso é que muitos responsáveis políticos e militares emitem declarações e atuam de acordo com esta ideologia, e esta é defendida sem subterfúgios, pelos meios de comunicação estatais e/ou controlados pelo governo.

2 - A Mente

Uma ideologia política é um conjunto organizado de ideias, uma filosofia orientadora, crenças, doutrinas e diretrizes de ação, geralmente aceite por grupos de cidadãos, que aponta normas de conduta, missões e objetivos a cumprir. Garante a unidade política e a coerência da ação, criando elos comuns e reconhecimento mútuo.

O Euroasianismo

Se quisermos comparar um império a um edifício, a ideologia é o cimento que mantém a sua integridade, lhe confere propósito, impede o seu colapso e, se tiver coerência interna, permite o seu crescimento.

As ideologias germinam na mente dos ideólogos e políticos (onde mais germinariam?) e, para um regime político, são um bem intangível, mais poderoso que os tangíveis canhões, uma vez que, sem ela, estes não saberiam em que direção abrir fogo. O Kaiser Guilherme II clamava por “mais canhões e menos manteiga”. Putin e Dugin clamam por mais ideologia e mais canhões.

Alexander Dugin e outros, com maior ou menor contribuição, construíram uma nova ideologia: o euroasianismo ou, mais propriamente, o neoeuroasianismo, pois, na verdade, o euroasianismo teve origem no final do século XIX entre a intelectualidade russa em São Petersburgo. Dugin retoma o tema e adapta-o à realidade atual.

Mas afinal, que ideologia é esta? Que ideias defende? Em que realidades se baseia? Para além da inspiração colhida nos escritos filosóficos de Heidegger, que outras contribuições integra?

2.1 Princípios Fundamentais

Praticamente todos os princípios fundamentais do euroasianismo acabam por se traduzir em três objetivos centrais ou contribuem para os viabilizar. No enunciado que se segue, notar-se-á claramente a influência de Heidegger, sobre o qual elaborámos no primeiro texto desta série, “A Ideia”. Os objectivos centrais são:

• A oposição aos valores e à hegemonia ocidentais;

• A criação de uma nova ordem mundial;

• A afirmação do papel de liderança da Rússia nesse processo de mudança.

Que princípios são esses?

• Defesa da Multipolaridade. Considera-se que a ordem mundial atual, constituída após a dissolução da URSS, deve ser destruída e substituída por outra, na qual o mundo seja reorganizado e regido por blocos regionais independentes.

• Afirmação da “Eurásia” como bloco civilizacional. A Eurásia seria mais do que uma realidade geográfica, seria uma civilização distinta, que sintetiza tanto valores europeus como asiáticos.

• Rejeição do Liberalismo e do Globalismo. Argumenta-se que, com o globalismo, não só a hegemonia política e económica ocidental se expandiu, mas também os direitos individuais, considerados corruptores da coesão social.

• Fortalecimento das Soberanias Nacionais Este é um princípio defendido mas não praticado internamente na Federação Russa, nem se prevê que o seja, dada a história das dominações russas. No entanto, o conceito é exportado e adotado por movimentos populistas europeus, com o intuito de corroer a já frágil coesão da União Europeia.

• Afirmação do Tradicionalismo e do Conservadorismo como alternativa dominante. O euroasianismo inclui uma dimensão mística e conservadora que se opõe à noção de Estado herdada da Revolução Francesa. Para esta ideologia, a tradição inclui a religião e opõe-se à separação entre o Estado e a Igreja. É contrária ao conceito de Estado laico tal como existe no Ocidente, bem como à separação de poderes, uma vez que os regimes, tal como algumas monarquias, teriam uma espécie de caução divina e lideres infalíveis.

• Defesa da Integração Geopolítica da Eurásia. A Eurásia é uma construção intelectual sobre uma realidade territorial. Não existe, de facto enquanto entidade política. Daí a insistência na necessidade de integração. A designação geopolítica, por sua vez, implica a existência de integração territorial, económica e militar concentradas num bloco. Este não é um empreendimento fácil. A própria designação do princípio põe os pontos nos "is" e explica como se conseguirá. E qual será o líder.

• Defesa da Centralidade da Rússia como força unificadora e líder natural do bloco euroasiático Centralidade, força unificadora, líder natural – a Rússia. Serão necessárias mais explicações?

• Reinterpretação da História Infelizmente para Dugin e os seus seguidores, a História não leva em conta as suas conveniências. A Rússia, vista como um ponto de reunião pacífico, respeitador das identidades nacionais, culturais e religiosas no seio de um bloco onde reina a harmonia e onde todos se opõem a um inimigo comum, é algo que nunca existiu. A Rússia tem de parecer o que não é, defendendo o que não existe contra inimigos hediondos que supostamente querem destruir algo que vive apenas no imaginário euroasianista.

O tratamento histórico dado a Alexandre Nevsky é revelador desta manipulação. Este príncipe russo do século XIII defendeu as fronteiras russas a ocidente. O filme homónimo de Sergei Eisenstein, produzido no contexto da Segunda Guerra Mundial, apresenta-o como o herói que derrotou os Cavaleiros Teutónicos alemães. No entanto, o filme omite que ele não combateu a oriente. porque pagava tributo à Horda Dourada do Império Mongol, sendo portanto seu vassalo. Hoje, além deste feito, é-lhe atribuído o título de príncipe de Kiev, quando, na realidade, o era de Novgorod, embora com jurisdição sobre Kiev. No contexto da invasão da Ucrânia e do euroasianismo, atribuir-lhe Kiev e boas relações com os mongóis faz dele um campeão do grande desígnio euroasianismo integrador de continentes.

A Igreja Ortodoxa Russa presta a sua colaboração e Alexandre é hoje um santo reverenciado.

Não devemos, no entanto, ser demasiado severos com os russos nesta matéria. Afinal, que país não interpreta a história da forma mais favorável ao seus próprios interesses e mitologia nacional?

2.2 Missão e Destino

O pressuposto fundador do euroasianismo consiste numa visão messiânica do destino da Rússia, até porque inclui elementos de ordem mística e de predestinação.

Segundo essa visão, a Rússia, sendo simultaneamente europeia e asiática, tem uma identidade cultural e civilizacional única.

A sua missão será reunir sob a mesma ordem política todos os povos eslavos, incluindo obviamente os países e nações da órbita da ex-URSS eslavos ou não, os países balcânicos e as regiões ou países onde haja populações significativas de origem russa. Além disso, as nações islâmicas integradas na atual Federação Russa devem permanecer tal e qual integradas na entidade política euroasiática.

É curioso que o país que defende o multilateralismo, usando, entre outros, o argumento de permitir a expressão das identidades culturais próprias de países menos poderosos, internamente faça exactamente o oposto, negando esse direito às muitas nações que compõem o império. Da fronteira com a Mongólia à Ucrânia, a essas múltiplas nações e culturas restará talvez o folclore como elemento de afirmação nacional. A rejeição da verdade única heideggeriana, pelos vistos, não é observada no interior do mapa traçado pelos domínios ideológicos desta ideologia.

Contudo, nem tudo decorre conforme os desígnios proféticos do euroasianismo. Em várias regiões da Federação Russa, culturas com etnicidade e línguas próprias resistem à ideologia que sentem como estranha. Essas regiões, como a Tárquia, a Circássia, a Íngria, Tuva e mesmo a Chechénia, que viu a sua independência esmagada pelas armas, reivindicam maior autonomia ou independência política e mantêm estruturas políticas próprias, semi-clandestinas ou no exílio.

Nos círculos afetos a estes movimentos, proclama-se que “o desmantelamento da Rússia é inevitável”.

O destino da Rússia, segundo os ideólogos euroasianistas, é ser o principal polo geopolítico das civilizações terrestres do mundo, em eterno conflito com as civilizações marítimas: o antigo Império Britânico e, atualmente, os EUA e a NATO.

Hoje, esse conflito ultrapassa o patamar geopolítico e estende-se ao plano ideológico: a Rússia é vista como a última defensora dos valores tradicionais e do idealismo, enquanto o Ocidente é identificado com o liberalismo e a sociedade guiada pelos mercados. Assim, trava-se também um confronto cultural.

Dado o messianismo ideológico, a Rússia só poderá sobreviver e florescer genuinamente se se mantiver fiel à via euroasianista. Caso contrário, será subjugada e relegada a um papel secundário.

Tudo, no enunciado da teoria euroasianista na qual, em alguns aspetos, ressoa o longínquo eco de seitas ocultistas tradicionalistas do passado, torna o impossível o insucesso da consagração da Rússia como principal polo geopolítico e o sucesso na afirmação do euroasianismo e a consequente constituição da Eurásia uma verdadeira questão existencial.

O Euroasianismo é ainda, pela sua própria natureza messiânica, uma ideologia expansionista, que não só pretende “trazer as ovelhas de volta ao rebanho” (para seu próprio bem, dizem), como ainda espalhar a mensagem pelo mundo, particularmente pela Europa.

Fotograma de Alexandre Nevsky filme de Sergei Eisenstein

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2.4. Obstáculos à Expansão da Ideologia

Obstáculos Internos

• Divisões internas na Eurásia
Mesmo entre repúblicas da Federação, as relações por vezes são tensas e nem sempre há coincidência de pontos de vista. No fim, é normalmente obtido um consenso para uso externo, sob ameaça ou pressão. A repetição destas situações vai criando ressentimentos acumulados.

• Movimentos de soberania
Nações ou regiões com identidade cultural, linguística, étnica ou religiosa, algumas das quais já referimos, tendem a ser resistentes a uma ideologia que sentem como estranha.

• Movimentos extremistas e separatistas internos
Estes tendem a sabotar tentativas de cooperação e opõem-se à ideologia euroasianista, considerando-a uma ideologia opressora e um instrumento de dominação.

Obstáculos Externos

• O possível insucesso dos movimentos populistas de extrema-direita.

• A resistência dos povos ocidentais à infiltração ideológica e à propaganda populista.

• A defesa intransigente por parte dos povos do Ocidente em favor das suas instituições democráticas, das liberdades cívicas e do estado de direito.

As ideias, as ideologias, as crenças, não se propagam espontaneamente. Existem métodos e instrumentos que as divulgam e popularizam. O nosso próximo artigo, “A Mão”, abordará esse tema.

2.3. O Euroasianismo e a União Europeia

Rejeição dos valores europeus. O Euroasianismo rejeita a Europa. Essa rejeição assume a forma de oposição frontal ao projeto europeu e aos seus valores, de forma genérica ao Ocidente e ao capitalismo, por meio da crítica à dominação "atlantista" e à globalização, que considera desastrosa para o resto da humanidade.

Afirmar a unidade cultural e o destino histórico comum dos russos e dos povos não russos da Rússia, da antiga União Soviética e de partes da Ásia e da Europa Central, bem como a ideia de que a posição geográfica central deste espaço eurasiano naturalmente e inevitavelmente implica uma forma imperial de organização política, faz com que qualquer secessão já verificada ou a verificar esteja destinada ao fracasso, deixando aos estados recém-independentes nenhuma escolha senão reverter para uma entidade política unificada, incluindo os já integrados na União Europeia.

No popular programa de televisão “Russia 1”, o tema da expansão territorial russa e da anexação de Portugal tem sido debatido mais do que uma vez. Na voz do apresentador Vladimir Solovyov: “A Rússia deve anexar Portugal depois de desnazificar a Alemanha”, e adianta um convidado: “os portugueses viveriam muito bem como parte do império russo”. “Um Império de Vladivostok a Lisboa, de onde em dias bons se pode ver a Estátua da Liberdade”.

Este tipo de comentários indica um certo ambiente ideológico instalado nas elites russas afetas a Putin e que vai contaminando a sociedade russa.

O que parece ser uma basófia de um radialista ganha contornos de mais seriedade quando a ideia é corroborada publicamente por Dmitri Medvedev, o “polícia mau” de Putin e conhecido por lhe fazer todos os favores. Medvedev sonha com uma Eurásia de “Lisboa a Vladivostok”. Ora, Medvedev não é um qualquer. Foi Presidente e Primeiro-Ministro da Federação Russa e é atualmente o vice-presidente do Conselho de Segurança da Federação Russa, órgão presidido pelo próprio Putin.

Eis o Euroasianismo a estender as suas asas para além do território do ex-império soviético e dos territórios de população eslava. É à luz da ideologia euroasianista que afirmações que parecem ser de mera retórica ganham um significado concreto, ameaçador e mesmo algo plausível.

Apoio e cumplicidades para a desagregação da União Europeia

É à luz da ideologia euroasianista que afirmações que parecem ser de mera retórica ganham um significado concreto, ameaçador e mesmo algo plausível.

Para além das diferenças ideológicas, a União Europeia é, comparativamente com a Rússia, um gigante económico. A UE só não compete com a Rússia em questões militares; de resto, o PIB europeu vale cerca de 15 vezes mais do que o russo, e o PIB per capita é o triplo do russo, ao passo que a população russa se cifra em cerca de 150 milhões de habitantes e a europeia em 450 milhões.

A União Europeia é, pois, um adversário demasiado poderoso para a Rússia e um sério obstáculo à realização dos seus planos estratégicos. Sejamos claros: a Rússia só consegue sobrepor-se à UE de duas formas:

Ou pela guerra, mas, dado que a maioria dos países europeus pertence à OTAN, o risco de uma guerra global seria incomportável.

Ou então pela desagregação da UE, se a conseguir desconstruir. Não é difícil imaginar que, se a Europa voltar a transformar-se naquilo que cinicamente se qualifica de Estados soberanos, cada um defendendo os seus interesses e reativando as suas antigas rivalidades de séculos, e se a Rússia tiver de lidar com cada estado separadamente em vez de lidar com a União, seria ela a maior potência europeia, livre de exercer a sua influência de “Lisboa a Vladivostok”.

Nisso, a Rússia conta com apoios na União Europeia: os partidos populistas e a imprensa sensacionalista europeia. Estes adquiriram muito da ideologia euroasianista, ignorando deliberadamente ou menosprezando a possibilidade de que a desagregação da UE pelas suas próprias mãos “eurocéticas” seja altamente penalizadora para os seus próprios países.

Os populistas estão a comprar em grande escala ideias como a oposição ao liberalismo ou “iliberalismo”, o tradicionalismo, procurando caução para as suas políticas em igrejas, e o nacionalismo, disfarçado de soberanismo.

Não falta mesmo um agente fiel aos postulados euroasianistas, um agente infiltrado de Moscovo na União Europeia: o Sr. Orbán. Orbán transformou o seu país numa placa giratória do euroasianismo, comprovadamente visível pela quantidade de reuniões, conferências, cimeiras e outras manifestações onde os partidos populistas europeus se encontram entre si, coordenam atividades e têm acesso à doutrinação euroasiática.

Putin e Dugin