Esquerda - Direita
por: Aharon Pereira
Imagino a indignação de um militante de esquerda que toda a vida defendeu as causas da esquerda, e que se envolveu na luta, quando lhe disséssemos, que a dicotomia esquerda direita já não servia para nada! Nem quereremos imaginar o que iria dizer, e justamente. Por certo, uma serie tremenda de impropérios e insultos. O mesmo se passaria com uma pessoa que fosse um convicto defensor das ideias da direita. Desde já tranquilizamos o leitor: não o faremos. Mas parece-nos evidente que que há na sociedade contemporânea muitos temas que saem do âmbito desta classificação, que se tornou estreita para os albergar.
É inegável que a dicotomia esquerda-direita, tão útil e estruturante ao longo de grande parte do século XX, está a tornar-se insuficiente para enquadrar as complexidades dos debates contemporâneos. Existem questões sociais, políticas e culturais que simplesmente não se ajustam a este eixo bipolar, escapando às categorias tradicionais e obrigando-nos a repensar o nosso enquadramento ideológico. Vejamos alguns exemplos:
Questões Ambientais
A emergência climática, longe de ser um tema exclusivamente de esquerda ou direita, atravessa as ideologias. Enquanto partidos de esquerda frequentemente destacam a necessidade de regulamentações e intervenções estatais para mitigar as mudanças climáticas, há também vozes no espectro conservador a apelar à preservação da natureza sob uma ótica tradicionalista ou de responsabilidade intergeracional. Por outro lado, o negacionismo climático e a oposição ao ambientalismo podem surgir tanto de setores da direita populista como de correntes ligadas ao crescimento económico liberal, que nem sempre têm uma filiação política clara.
Direitos Digitais e Privacidade
A ascensão do capitalismo digital e o crescimento da vigilância tecnológica por empresas e Estados transcendem o eixo esquerda-direita. Tanto progressistas como conservadores podem alinhar-se na defesa da privacidade individual e dos direitos digitais, enquanto outros, de ambos os lados, podem priorizar a segurança ou o progresso tecnológico em detrimento desses direitos. A questão, neste caso, prende-se mais com valores como liberdade individual, regulação de mercados e ética tecnológica do que com as divisões tradicionais.
Políticas de Saúde Pública na Pandemia
A gestão da pandemia da COVID-19 trouxe à tona divisões que não se enquadram claramente no paradigma esquerda-direita. A adoção de medidas como confinamentos, vacinação obrigatória ou restrições de movimento gerou apoios e críticas em ambos os lados do espectro. Enquanto algumas vozes progressistas defenderam a proteção coletiva a todo o custo, outras, igualmente à esquerda, destacaram a ameaça às liberdades individuais. Do mesmo modo, na direita, coexistiram posições de defesa da ordem pública e da saúde com críticas ferozes ao que foi visto como autoritarismo sanitário.
Questões de Identidade e Cultura
Temas como os direitos das comunidades LGBTQ+, as políticas de identidade e a questão do multiculturalismo também desafiam o tradicional binário político. Por exemplo, há setores à esquerda que se dividem entre apoiar plenamente o multiculturalismo e criticar práticas culturais que consideram incompatíveis com valores progressistas, como os direitos das mulheres. Na direita, encontram-se igualmente divisões entre os que defendem valores tradicionais e os que promovem um nacionalismo inclusivo.
Criptoeconomia e Blockchain
As criptomoedas e as tecnologias baseadas em blockchain são outro exemplo de questões que transcendem a velha dicotomia. Para alguns, representam uma oportunidade de descentralizar o poder, subtraindo-o tanto ao Estado (desafeto de setores da direita libertária) quanto ao grande capital (criticado pela esquerda anticapitalista). Para outros, simbolizam uma ameaça à estabilidade económica ou são vistas como ferramentas de especulação desenfreada.
A Inteligência Artificial e o Futuro do Trabalho
A automação e a inteligência artificial estão a reconfigurar os paradigmas económicos e sociais. As soluções propostas para lidar com o impacto da IA na força de trabalho – como a implementação de um rendimento básico universal – não pertencem exclusivamente a um lado do espectro. Há apoiantes e críticos desta ideia tanto à direita como à esquerda, por motivos distintos.
Estes exemplos mostram que o mundo contemporâneo está a ser moldado por desafios que exigem novas formas de pensar. Em vez de nos limitarmos a uma luta entre "esquerda" e "direita", talvez seja hora de adotar uma abordagem mais complexa, que valorize as ideias em função dos seus méritos e impactos, em vez de as encaixar num paradigma político cada vez mais desajustado.
Um pouco de história
Embora amplamente conhecido, vamos relembrar a origem dos termos "direita" e "esquerda" na política. Teve a sua origem na Revolução Francesa de 1789, durante as sessões da Assembleia Nacional, o órgão legislativo da época.
Contexto Histórico
Após a revolução, quando a monarquia absolutista foi derrubada, formou-se uma Assembleia para discutir o futuro político de França. Nessa Assembleia, os deputados dividiram-se fisicamente em dois lados com base nas suas posições em relação ao poder do rei e às mudanças sociais.
1. Esquerda:
Os que se opunham ao poder absoluto do rei e defendiam mudanças radicais, como a criação de uma república, mais igualdade social e o fim dos privilégios da nobreza e do clero, sentaram-se à esquerda do presidente da Assembleia. Estes membros eram os mais revolucionários e progressistas da época, advogando por um sistema de governo mais representativo e democrático.
2. Direita:
Os que defendiam o rei e queriam preservar o status quo ou manter o sistema tradicional de monarquia, com alguns ajustes limitados, sentaram-se à direita do presidente da Assembleia. Estes membros representavam os interesses da aristocracia e do clero, que estavam mais interessados na manutenção das hierarquias sociais e nos privilégios herdados.
Evolução dos Termos
Desde então, os termos "esquerda" e "direita" passaram a ser usados para designar as duas principais tendências políticas:
Esquerda passou a representar ideias progressistas, igualitárias, focadas em reformas sociais, distribuição de riqueza, direitos laborais, e, em geral, maior intervenção estatal para garantir igualdade e justiça social.
Direita ficou associada a valores conservadores, focados na preservação de tradições, menor intervenção estatal, defesa da propriedade privada e do livre mercado, bem como a manutenção da ordem social estabelecida.
Hoje, estes termos abrangem uma vasta gama de ideologias, mas continuam a ser usados para definir os polos opostos da política.
A relevância dos termos "direita" e "esquerda" continua a ser debatida, tanto em Portugal como no mundo. Se por um lado estas designações ainda servem para enquadrar ideologias políticas de uma forma geral, por outro, muitos argumentam que a política moderna já não se ajusta a esta divisão linear, devido à crescente complexidade dos problemas e das posições adotadas pelos partidos.
Argumentos a favor do uso de "direita" e "esquerda"
1. Polarização ideológica:
Apesar das mudanças na sociedade e na política, a polarização ideológica mantém-se forte em muitos países, incluindo Portugal. Os partidos de esquerda, continuam a defender políticas de redistribuição de riqueza, proteção laboral, direitos sociais e maior intervenção estatal, enquanto os partidos de direita, privilegiam o liberalismo económico, a liberdade individual e o papel limitado do Estado. Este contraste claro continua a dar relevância aos termos.
2. Identidade política:
A classificação em "direita" e "esquerda" facilita a identificação política para os eleitores e o entendimento das posições fundamentais dos partidos. Estas etiquetas são referências para muitos cidadãos, que as utilizam para se orientarem no espectro político, em particular em temas económicos, sociais e culturais.
3. Causas fundamentais:
Certos temas permanecem ancorados nos debates clássicos entre direita e esquerda. A intervenção do Estado na economia, as políticas fiscais, os direitos laborais, a saúde e a educação públicas são questões que continuam a ser debatidas dentro dos parâmetros tradicionais destes dois polos.
Argumentos contra o uso de "direita" e "esquerda"
1. Complexidade crescente:
A política contemporânea tornou-se muito mais complexa do que a simples dicotomia entre esquerda e direita. Questões como o ambientalismo, os direitos digitais, o feminismo ou os direitos LGBTQ+ não se alinham facilmente nas definições tradicionais. Além disso, a globalização e a crise financeira de 2008 trouxeram novos desafios económicos e sociais que cruzam as fronteiras da esquerda e da direita.
2. Novos movimentos e populismo:
O surgimento de movimentos populistas, tanto à esquerda como à direita, e a ascensão de partidos que se posicionam contra as elites políticas tradicionais complicam a utilização desta divisão binária. Apareceram movimentos que misturam elementos de ambos os lados do espectro, centrando-se em temas populistas como a luta contra a corrupção e o nacionalismo. A crescente importância de temas identitários, culturais e de imigração ultrapassa muitas vezes as preocupações económicas clássicas que definiam o eixo esquerda-direita.
3. Pragmatismo político:
Muitos partidos hoje misturam elementos de ambos os lados. Este pragmatismo reflete a realidade de que as ideologias puras muitas vezes são deixadas de lado em favor de soluções concretas e viáveis para os problemas da governação.
4. A Era Digital e os Novos Desafios Globais:
Questões como a inteligência artificial, a segurança cibernética, a desinformação e o capitalismo digital não se enquadram facilmente nas definições tradicionais de direita e esquerda. A forma como diferentes partidos abordam esses temas tende a variar e não segue sempre uma lógica clara dentro do eixo esquerda-direita.
Excesso de informação à esquerda e à direita
Faz sentido continuar a usar "direita" e "esquerda"?
Em termos gerais, os termos "direita" e "esquerda" ainda fazem sentido em Portugal e no mundo, especialmente no que toca a temas políticos, económicos e sociais nucleares. No entanto, a política atualmente é mais complexa, e o surgimento de novos movimentos, a polarização cultural e os desafios globais tornam necessário reconhecer que a divisão clássica nem sempre é suficiente para descrever toda a amplitude do debate político contemporâneo. A combinação de ideologias, o pragmatismo e a emergência de novos temas sugerem que, embora "direita" e "esquerda" continuem úteis, há uma crescente necessidade de um espectro político mais dinâmico e abrangente para lidar com a complexidade das sociedades que se desenvolvem em todos os continentes. Assim recomendamos aos tais militantes quer de esquerda ou direita citados no início, que adotem uma das citações da série Keep Calm: Keep calm and embrace complexity ou Keep calm and challenge paradigms, o que em português seria: Mantenha a calma e aceite a complexidade ou Mantenha a calma e desafie paradigmas.
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