Moçambique - Independência desperdiçada
Foi a Independência Moçambicana um ato falhado?
por Simon Ben-David
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Moçambique, um país de uma beleza natural indiscutível e de uma riqueza cultural singular, carrega, na sua história recente, o peso de uma luta pela independência que não conseguiu realizar-se plenamente. A história recente da nação está marcada por um conflito sangrento, uma promessa de liberdade, e por fim, por uma realidade onde os ideais de um Moçambique livre e próspero se dissiparam, dando lugar a um conjunto de problemas socioeconómicos, políticos e institucionais que perduram até aos dias de hoje. Os problemas têm-se exacerbado e atualmente revelam a sua verdadeira dimensão. Tal como fizemos no texto sobre a descolonização, para nós acabaram-se os tabus: a verdade é que a descolonização em Moçambique soma um conjunto de desaires, que parecem não terem fim. Começamos com este primeiro texto uma série nova de artigos denominada "Moçambique - Independência desperdiçada" , que aborda a história do pós-independência naquele estado, e as razões que levaram a situação ao descalabro atual.
Deixamos desde já claro, que os artigos da serie, não se destinam a provar que a descolonização, não devia ter sido feita. Não, nada disso. Até dizemos mais, não só devia ter sido feita, como tinha que ser feita, pois não havia qualquer outra alternativa. Leia o nosso artigo sobre a descolonização para compreender o ponto de vista que defendemos.
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Adescolonização portuguesa no século XX.
A Luta Pela Independência
A luta pela independência de Moçambique iniciou-se em 1964, com a criação da Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO), um movimento de guerrilha que visava libertar o país do colonialismo português. Moçambique, como muitas outras ex-colónias africanas, que foram colonizadas e exploradas ao longo dos séculos pelos europeus., com as populações locais sendo sujeitas a uma exploração e a uma subordinação política e económica que foi evoluindo da escravatura à condição mais recente (em meados do século XX) de cidadãos de segunda, sem plenos direitos. Esta foi a evolução nas colónias portuguesas. A FRELIMO, liderada por figuras como Eduardo Mondlane, Samora Machel e outros, mobilizaram milhares de moçambicanos na luta contra o poder colonial português.
A guerra foi-se desenvolvendo e intensificou-se, com a FRELIMO a enfrentar as forças militares de Portugal, que estavam envolvidas em outras guerras de independência nas suas colónias africanas, em Angola e Guiné-Bissau. A resistência de Moçambique foi alimentada pelos guerrilheiros, mas também pelo apoio internacional. Durante as décadas de 1960 e 1970, muitos países, especialmente a União Soviética, as nações do bloco socialista, a China mas também os EUA, forneceram apoio à FRELIMO, o que ajudou a manter a luta contra as forças portuguesas.
Em 1974, a Revolução dos Cravos em Portugal trouxe uma mudança de regime, e o novo governo português, ficou interessado em terminar a guerra, iniciando conversações com a FRELIMO. No ano seguinte, Moçambique tornou-se oficialmente independente, com Samora Machel tornando-se o primeiro presidente do país. Para muitos, esse era o momento de um novo começo: uma Moçambique soberano, livre da opressão colonial, pronta para construir uma nação próspera e justa.
As dificuldades Pós-Independência
No entanto, a independência de Moçambique revelou, desde o seu início, um momento de esperança, mas também de grandes desafios. O país estava devastado pela guerra e a sua economia era frágil. As instituições ou eram inexistentes ou eram incipientes, com a máquina do Estado paralisada. A FRELIMO, ao assumir o controlo do governo, procurou estabelecer um sistema socialista, baseado em modelos que, em grande parte, não tinham em conta as realidades locais. Era inevitável que assim fosse, pois o armamento, o apoio militar, o treino e a débil organização tinham sido recebidos da União Soviética e, na parte final da luta, também da China de Mao. O modelo político adotado ignorava por completo a tradição africana, e o povo moçambicano teve de passar de uma cultura de base tribal e colonial para uma tentativa de implementação de um regime socialista, num ápice, que nada tinha a ver com a sua realidade. Os russos e chineses enviados para Moçambique eram instrutores militares e nada sabiam de África nem dos africanos. Acresce que a situação tumultuosa de uma descolonização não preparada por Salazar, que é sem dúvida o primeiro responsável pelas dificuldades de Moçambique, fez com que os portugueses residentes em Moçambique começassem a regressar maciçamente a Portugal, deixando abandonados os postos intermédios que faziam o Estado funcionar. Ao contrário do que algumas forças defendem, os portugueses colonialistas, proprietários e latifundiários, eram uma minoria. A maioria era constituída por uma pequena burguesia de operários, técnicos, funcionários do Estado e pequenos proprietários de negócios, que davam corpo ao funcionamento da sociedade em todas as suas vertentes. Muitos nem eram portugueses: mas indianos, paquistaneses, chineses, gregos, sul-africanos entre várias nacionalidades, faziam parte da sociedade colonial portuguesa e eram essenciais. Toda esta gente não foi acarinhada após a independência e saiu apressadamente do país, deixando um vazio tremendo que levou anos a colmatar.
Os modelos socialistas importados da União Soviética, com tentativas de centralização do Estado e de reforma agrária coletivista, encontraram, desde o início, resistência tanto de forças internas como das dificuldades económicas resultantes do bloqueio e da escassez de recursos humanos e materiais. Como se não fossem poucas estas dificuldades, durante as décadas seguintes, o país mergulhou numa guerra civil brutal, com a resistência da RENAMO (Resistência Nacional Moçambicana), um movimento criado após a independência, que recebeu apoio da África do Sul (apartheid) e dos Estados Unidos, em parte como um esforço para conter a influência da União Soviética no país. A guerra civil, que começou em 1977 e durou até 1992, foi devastadora, com centenas de milhares de mortos e milhões de deslocados, e com a destruição quase total de um dos parques ecológicos e de estabilização e proteção da vida selvagem mais importantes e notáveis de África, o Parque Nacional da Gorongosa. A destruição do parque foi um dos maiores crimes ecológicos já ocorridos em África.
Após o fim da guerra civil e a assinatura dos Acordos de Paz de Roma em 1992, Moçambique deveria ter dado um passo em frente, rumo à paz e ao desenvolvimento. No entanto, o que se seguiu foi uma história de promessas de reconstrução que nunca se concretizaram na totalidade.
A Desilusão Pós-Independência
Apesar da paz alcançada em 1992, a década de 1990 e os primeiros anos do século XXI foram marcados por uma crescente desilusão com o governo da FRELIMO. O país, que deveria estar a usufruir de uma reconstrução económica e social, viu-se a afundar cada vez mais numa crise política e económica. O sistema democrático, que parecia promissor com a introdução de eleições multipartidárias, foi, na verdade, sendo minado ao longo dos anos por práticas de corrupção, clientelismo e, mais recentemente, pela prática reiterada de fraudes eleitorais.
A economia de Moçambique, em grande parte dependente de recursos naturais como o carvão, gás e minerais, foi moldada por um modelo económico que beneficia as elites políticas e empresariais, mas que não conseguiu criar um sistema verdadeiramente inclusivo que beneficiasse a maioria da população. O país continuou a ser afetado por altos níveis de pobreza, desigualdade e subdesenvolvimento. Moçambique ocupa uma posição bastante alta no índice de pobreza global. Segundo os dados mais recentes, o país é um dos mais pobres do mundo, com grande parte da sua população vivendo abaixo da linha da pobreza. De acordo com o Banco Mundial, mais de 60% da população de Moçambique vive com menos de 1,90 dólar por dia (o limiar internacional da pobreza extrema).
O que inicialmente parecia uma nação cheia de promessas de prosperidade pós-independência, transformou-se rapidamente numa nação onde os seus cidadãos se veem cada vez mais marginalizados no processo de desenvolvimento. As promessas de liberdade e de um futuro melhor para todos deram lugar a uma luta pela sobrevivência.
Fraude Eleitoral e Crise Política Contínua
Nos últimos anos, a questão das fraudes eleitorais tornou-se um ponto crítico em Moçambique. O país tem realizado eleições regulares, e nesse aspeto ao contrário do que acontece em muitos países africanos, as eleições ocorrem regularmente de acordo com a constituição. O problema reside, em alegações de manipulação, violência e intimidação, em grande parte devido ao controle que a FRELIMO exerce sobre as instituições eleitorais e o sistema político. A transparência e a justiça das eleições têm sido frequentemente questionadas por organizações internacionais e pela oposição política.
Em 2014 e em 2019, as eleições presidenciais foram marcadas por acusações de fraude, com observadores a denunciar a falsificação de votos e o uso da força para garantir que a FRELIMO permanecesse no poder. A RENAMO, principal partido de oposição, tem exigido reformas no sistema eleitoral e a realização de eleições justas, mas até agora, pouco ou nada mudou. A falta de confiança no sistema eleitoral tem gerado protestos e violência, com a população a perder cada vez mais a confiança na justeza das eleições, e na capacidade do governo de proporcionar uma governança eficaz e equitativa.
Além disso, o crescente envolvimento de grupos políticos com interesses económicos cria uma camada de corrupção que torna ainda mais difícil a resolução dos problemas do país. A exploração dos recursos naturais, sem um benefício substancial para a população em geral, e o desvio de fundos destinados ao desenvolvimento social, como aconteceu no caso do escândalo das "dívidas ocultas" em 2016, são apenas exemplos das falhas estruturais que continuam a afetar Moçambique.
O Futuro de Moçambique
A situação atual de Moçambique que é caracterizada pela luta pela verdadeira independência – não só política, mas também económica e social – está longe de estar resolvida. O país continua a enfrentar uma luta interna entre as promessas de liberdade feitas nos anos 1970 e a realidade de um governo que se perpetua no poder, sem uma mudança real nas estruturas de governo.
A independência de Moçambique foi, sem dúvida, um marco importante na história do país, mas, como muitos outros países africanos, o sonho de uma verdadeira autonomia e prosperidade ainda está longe de ser alcançado. A corrupção, a falta de uma governação justa e o conflito político interno continuam a ser os maiores obstáculos para a verdadeira liberdade e progresso.
O futuro de Moçambique dependerá da capacidade da sua população e dos seus líderes em superar as divisões políticas e de trabalhar juntos para construir uma nação mais equitativa e democrática, onde todos possam beneficiar dos frutos da independência. Até que isso aconteça, a luta por uma verdadeira independência continuará a ser uma promessa falhada. A continuação da deterioração das instituições através da falsificação da vontade popular, pode conduzir o país a uma segunda guerra civil, à divisão do país em pelo menos dois blocos, e a um estado falhado, com vários polos de poder a guerrearem-se entre si. Moçambique corre este risco.
Próximos textos
A série continua recuando ao tempo do inicio da Frelimo, e ao assassinato do seu primeiro Presidente Eduardo Mondlane. As contradições já nessa altura se manifestavam. Para se compreender a situação atual é sempre interessante consultar a história. Note que Venâncio Mondlane, principal opositor atual da FRELIMO não é descendente do primeiro Presidente da Eduardo Mondlane.
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