"China: O Dragão Autoritário”

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por Simon Ben-David

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Texto #9

África e a Nova Rota da Seda

(ou Belt and Road Initiative – BRI)

A Influência da China em África

A relação entre a China e o continente africano tem vindo a ganhar uma importância crescente nas últimas décadas. As ambiciosas estratégias de investimento da China têm transformado paisagens económicas e sociais, mas também levantado questões complexas sobre soberania, sustentabilidade e impacto a longo prazo.

Deixamos ainda a nota que o artigo não se dedica a comparar a cooperação com África realizada pelo Ocidente com a da China, mas tão somente a analise da Nova Rota da Seda em África e a referência a algumas notas históricas envolvendo Portugal.

Origens Históricas da Parceria Sino-Africana

A ligação da China com África remonta aos anos 50 60 e 70 do século passado, durante as lutas de independência dos países africanos. Nessa altura, a China posicionava-se como um aliado dos movimentos de libertação, procurando construir alianças políticas contra o imperialismo ocidental. Esta solidariedade inicial abriu caminho para um relacionamento que, nas últimas décadas, se desenvolveu numa colaboração económica robusta.

O ponto de viragem deu-se nos anos 2000, com a criação do Fórum de Cooperação China-África (FOCAC), um evento bienal que formalizou uma série de acordos económicos e de desenvolvimento. Este fórum destacou a China como um parceiro que, ao contrário do Ocidente, prometia investimentos sem as típicas condições políticas associadas.

Estratégia de Salazar no Contexto Colonial

Portugal, com vastas colónias em África, foi o último país europeu a descolonizar. Durante o Estado Novo, Salazar lidou com a presença da China de Mao em Macau e nas colónias africanas portuguesas. A visão de Salazar sobre a China é relevante, para compreender como a China começou a expandir a sua influência em África.

A China como Potência Estratégica

Salazar reconheceu a relevância da China na década de 50 do século XX, com mais de 500 milhões de habitantes na altura, e uma posição geográfica estratégica importante na Ásia e Pacífico, (Mar da China). Macau era visto como um elo vital para a presença portuguesa na Ásia. Salazar procurou equilibrar a preservação dos interesses coloniais num cenário internacional em mutação, considerando as relações comerciais e culturais com a China fundamentais para legitimar essa presença.

O Impacto da Revolução Comunista

A situação alterou-se, com a ascensão de Mao Tsé-Tung e o Partido Comunista Chinês. Para Salazar, isto representava uma ameaça à estabilidade das colónias portuguesas. A ideologia anticomunista do regime levou-o a temer a propagação do comunismo, o que se refletiu na política externa portuguesa, que passou a privilegiar alianças com o Ocidente, particularmente com os Estados Unidos, no contexto da Guerra Fria.

Pragmatismo nas Relações Internacionais

Apesar do anticomunismo, Salazar mostrou pragmatismo, mantendo diálogo com a China sob o regime comunista. Procurou relações cautelosas para estabilizar Macau e os territórios coloniais africanos, apresentando a presença portuguesa perante o Ocidente, como um contrapeso ao comunismo e defendendo o intercâmbio cultural enquanto preservava o domínio colonial.

O Apoio Chinês aos Movimentos de Libertação em África

Durante as décadas de 60 e 70, a China começou a apoiar os movimentos anticoloniais em África, como sejam o MPLA, FRELIMO e PAIGC, oferecendo ajuda política, militar e financeira.


Motivações da China

As razões incluíam a expansão da ideologia comunista, vendo a luta anticolonial como parte de uma revolução global, mas também devido à competição do Maoismo com a União Soviética, que então estava ao rubro. A China considerava que devia tomar a vanguarda pela influência em África e na solidariedade com povos oprimidos. Nesta fase Salazar ligava a ameaça do comunismo chinês a um discurso mais amplo de defesa do Ocidente contra a expansão do comunismo internacional, justificando assim, a sua guerra contra os movimentos de libertação em África, como a defesa não só de Portugal, mas também do mundo ocidental.

Ele via a China de Mao como uma potência comunista expansionista, cuja ideologia influenciava os movimentos de libertação das colónias africanas portuguesas, o que Salazar considerava uma ameaça direta ao seu regime e ao império colonial português.

Efetivamente, o apoio chinês fortaleceu os movimentos de libertação, intensificando a guerra colonial e apressando a descolonização. Após a independência das colónias africanas, a importância da influência chinesa na redefinição política do continente aumentou. Esta aliança foi crucial na redefinição geopolítica de África durante a Guerra Fria.

O caso das colónias portuguesas é assim paradigmático de como a China chegou a África no tempo de Mao.

O modelo de investimento atual da China em África, é muito distinto do que se passava no tempo de Mao. Presentemente a política chinesa, é multifacetada, abrangendo projetos de infraestrutura, comércio, mineração, e empréstimos financeiros, aos países independentes que resultaram da descolonização. As infraestruturas, em particular, tornaram-se o cartão de visita da presença chinesa no continente, com a construção de estradas, ferrovias, portos e edifícios governamentais em diversos países. Seguem-se a referência a alguns exemplos:

Infraestruturas e Desenvolvimento: A China é responsável por alguns dos maiores projetos de infraestrutura em África, como a ferrovia Mombasa-Nairobi no Quénia, que modernizou significativamente o transporte regional, e o caminho de ferro entre Addis Abeba e Djibuti, uma rota vital para as exportações da Etiópia. Estes projetos são, muitas vezes, financiados por empréstimos chineses com baixas taxas de juro, e administrados por bancos como o Banco de Exportação e Importação da China.

Investimentos em Recursos Naturais:
África é uma fonte abundante de recursos minerais, como petróleo, cobre e cobalto. A China tem aproveitado essa riqueza para garantir o abastecimento das suas indústrias. O envolvimento em setores como a mineração do cobalto na República Democrática do Congo gerou críticas devido às más condições de trabalho e à falta de preocupações ambientais.

Zona de Comércio e Infraestrutura Digital:
Com uma população jovem e crescente, inclinada para a tecnologia, África tem potencial para desenvolver um setor de IA próspero. No entanto, a criação de uma base robusta de IA requer infraestruturas digitais avançadas e muita energia, recursos que são escassos em África, mas que estão a ser disponibilizados através de investimentos chineses. Empresas como a Alibaba e a Huawei expandem-se, oferecendo serviços de cloud e investindo em centros de dados. A Huawei, por exemplo, anunciou um investimento de 430 milhões de dólares em centros de dados em África, enquanto a Alibaba já fornece serviços de cloud na África do Sul.
Os centros de dados exigem enormes quantidades de energia, excedendo a atual capacidade de produção africana de cerca de 12,8 GW anuais. Aqui, também, a China assume um papel central, com investimentos em 15 países africanos.
Para os governos africanos, investir em educação e no desenvolvimento de competências tecnológicas é crucial, para que possam gerir as suas próprias tecnologias de IA. Parcerias com doadores internacionais e empresas tecnológicas também ajudarão a garantir uma oferta estável de mão-de-obra qualificada e a manter a independência do setor.
Assim, além das infraestruturas físicas, a China tem investido em telecomunicações e tecnologia, com empresas como a Huawei a liderar o desenvolvimento da rede 5G em vários países. Isto representa uma expansão estratégica que consolida a influência digital da China.

Benefícios e Oportunidades para os Países Africanos

A presença da China em África trouxe, sem dúvida, benefícios significativos. Em muitos casos, os investimentos chineses aceleraram projetos de infraestrutura que os governos locais ou outros investidores internacionais não conseguiram financiar. A modernização de transportes, portos e energia elétrica facilitou o crescimento económico e potenciou a criação de empregos diretos e indiretos.

O acesso a financiamento chinês também proporcionou a muitos países africanos a oportunidade de escapar às restrições financeiras impostas por entidades ocidentais, que frequentemente condicionam os seus empréstimos a reformas políticas e económicas.

As Estratégias de Investimento da China atual em África

Críticas e Preocupações: Neo-Colonialismo ou Parceria Igualitária?

Apesar dos benefícios tangíveis, a crescente presença da China em África não está isenta de críticas. Uma das principais acusações é a de que os investimentos chineses representam uma forma de neo-colonialismo, onde a infraestrutura e os empréstimos são meios para assegurar uma dependência económica e política dos países africanos em relação à China. Obviamente que cabe aos países africanos avaliar os benefícios e os riscos da sua cooperação com a China. Seguidamente vamos elencar os riscos e as vantagens que esta cooperação comporta:

1. Endividamento Excessivo e Risco de Dependência

Muitos países africanos, ao aceitarem empréstimos chineses para financiar projetos de infraestruturas, aumentam rapidamente a sua dívida externa. Como resultado, ficam sobrecarregados financeiramente e acabam por depender da China para sustentar as suas infraestruturas. Esta dependência financeira torna-os vulneráveis a pressões económicas e políticas, podendo comprometer a sua autonomia e independência nacional. Em alguns casos, a incapacidade de pagar estas dívidas já levou países a perderem o controlo de ativos estratégicos para a China.

2. Controlo de Infraestruturas Estratégicas

O investimento chinês concentra-se em infraestruturas estratégicas, como portos, ferrovias, estradas e centrais energéticas, mas isto pode vir com um preço elevado para a soberania nacional. Em alguns casos, a China negocia condições que lhe garantem controlo parcial ou total dessas infraestruturas em caso de incumprimento dos pagamentos. Isto pode significar uma interferência direta nas políticas e nas operações nacionais dos países africanos, comprometendo as suas opções de desenvolvimento independente e o seu controlo sobre recursos críticos.

3. Impacto Ambiental e Social

Muitos projetos da Rota da Seda em África são implementados com pouca transparência ou respeito pelas normas ambientais e sociais. As novas infraestruturas podem levar ao desmatamento, poluição, deslocamento de comunidades locais e perda de biodiversidade. Em países com fracas regulamentações ambientais, a BRI pode torna-se um acelerador de problemas ecológicos, com impactos de longo prazo nos ecossistemas e nas condições de vida das populações locais.

4. Desigualdade e Perda de Emprego Local

Apesar da promessa de gerar emprego, muitos projetos acabam por favorecer trabalhadores e empresas chinesas, limitando as oportunidades para os trabalhadores locais. Além disso, empresas africanas muitas vezes não têm capacidade para competir com grandes corporações chinesas que recebem financiamento e subsídios do governo da China. Isto não só pode minar o crescimento de indústrias locais, mas também pode agravar desigualdades económicas, reforçando a dependência económica de África face a uma potência externa.

5. Influência Política e Geopolítica

A expansão da Rota da Seda permite à China fortalecer a sua influência política em África, posicionando-se como um parceiro estratégico junto dos governos africanos. Esta relação, no entanto, não é apenas económica; a China ganha capacidade de aproveitar a influência para obter apoio em fóruns internacionais, como as Nações Unidas, onde vários países africanos votam favoravelmente em questões de interesse para Pequim. A crescente influência da China em África desafia o equilíbrio geopolítico, reduzindo a influência de outras potências, como os Estados Unidos e a União Europeia.

6. Exportação de Modelos Autoritários

Além de infraestruturas, a China pode aproveitar para exportar também modelos de governação e tecnologias de vigilância digital para alguns países africanos. A implementação de sistemas de monitorização em massa e o apoio à censura e ao controlo digital em países africanos podem favorecer regimes autoritários, limitando direitos e liberdades civis. Este cenário agrava o risco de violação de direitos humanos e de repressão de vozes dissidentes, colocando em causa o progresso democrático em algumas regiões africanas.

O Equilíbrio entre Cooperação e Exploração

A questão de saber se a influência da China em África representa uma verdadeira cooperação ou uma forma de exploração depende, em grande parte, da perspetiva de análise. Muitos governos africanos veem na China um parceiro que fornece capital e expertise sem os entraves ideológicos comuns nas relações com o Ocidente. No entanto, as dinâmicas de poder subjacentes e as consequências de longo prazo levantam interrogações sobre a sustentabilidade deste modelo de crescimento.

O futuro da parceria sino-africana dependerá da capacidade dos líderes africanos em negociar termos equitativos e de promover estratégias que priorizem os interesses das suas populações. A criação de parcerias transparentes e a diversificação dos aliados comerciais podem ser passos importantes para evitar uma dependência que comprometa a autonomia do continente.

Conclusão

A relação entre a China e África é complexa e cheia de nuances. É um facto que os investimentos chineses têm impulsionado o desenvolvimento em áreas críticas e ajudado a preencher lacunas deixadas por outras potências. No entanto, as preocupações sobre a dívida, o emprego e o impacto ambiental tornam imperativo um exame crítico sobre as verdadeiras implicações dessa cooperação.

Será o papel da China em África uma nova era de parceria para o desenvolvimento ou o renascimento de padrões neo-coloniais sob uma bandeira diferente? A resposta talvez resida na forma como os países africanos decidirem moldar o seu futuro, equilibrando os benefícios imediatos com a sua independência e sustentabilidade a longo prazo.

     

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O logotipo da Cimeira do Fórum de Cooperação China-África de 2024