Futebol e Propaganda
'Sportswashing' na Arábia Saudita e no Catar
por Aharon Pereira

Nos últimos anos, a Arábia Saudita e o Catar emergiram como novos polos no universo do futebol global. Estes países, historicamente conhecidos pela sua dependência de recursos naturais como o petróleo e o gás, têm utilizado o desporto, nomeadamente o futebol, como uma ferramenta estratégica para alcançar uma maior projeção internacional. Através de investimentos maciços em clubes, jogadores e infraestruturas desportivas, estão a tentar reconfigurar a sua imagem global. Contudo, esta ascensão meteórica vem acompanhada de um lado obscuro — a instrumentalização do desporto para mascarar as suas práticas repressivas, um fenómeno conhecido como "sportswashing".

"Sportswashing" como Ferramenta de Propaganda

O termo "sportswashing" descreve a prática de regimes autocráticos utilizarem grandes eventos desportivos ou o patrocínio a desportos populares para melhorar a sua imagem internacional. Este fenómeno é evidente tanto na Arábia Saudita quanto no Catar. Ao investirem em clubes europeus e ao atraírem estrelas globais do futebol para as suas ligas, ambos os países procuram mudar a narrativa em torno dos seus registos de direitos humanos e silenciar críticas internacionais.

O Catar, por exemplo, foi o anfitrião do Campeonato do Mundo de Futebol de 2022, um evento que lhe proporcionou uma plataforma global sem precedentes. A narrativa promovida pelo país era de modernização e abertura ao mundo, mas esta imagem não refletia a realidade. Por detrás dos estádios futuristas e do brilho dos grandes jogos, estavam milhares de trabalhadores migrantes que construíram as infraestruturas em condições desumanas. Estima-se que milhares tenham morrido devido a condições de trabalho perigosas e extenuantes, semelhantes à escravatura. O sistema de kafala, amplamente utilizado no Catar, permitia que os empregadores confiscassem os passaportes dos trabalhadores, obrigando-os a aceitar salários miseráveis e condições de vida precárias, sob pena de não poderem sair do país.

A Arábia Saudita segue uma estratégia semelhante. Com uma política externa marcada por controvérsias, incluindo o envolvimento na guerra civil do Iémen, o assassinato brutal do jornalista Jamal Khashoggi em 2018, e uma repressão interna de dissidentes, o reino tem procurado desviar a atenção dos seus abusos através de investimentos desportivos. O fundo soberano saudita comprou o Newcastle United em 2021, num movimento amplamente criticado por grupos de direitos humanos como uma tentativa descarada de branquear a imagem do regime.

Ao longo dos últimos anos, a Arábia Saudita tem atraído alguns dos maiores nomes do futebol mundial, como Karim Benzema, para jogarem na sua liga local. Estes jogadores foram seduzidos com contratos astronómicos, numa clara demonstração do poder económico do reino. Contudo, esta política não tem por objetivo o desenvolvimento sustentável do desporto, mas antes o uso do futebol como um instrumento de propaganda para distrair o mundo dos crimes do regime saudita, incluindo as execuções públicas, a opressão das mulheres e a falta de liberdade de expressão.

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Investimentos Agressivos e o desprezo pela natureza do Futebol

A estratégia de ambas as nações de investir quantias astronómicas no futebol está a gerar consequências perturbadoras para a dinâmica global do desporto. Estas somas milionárias estão a distorcer o mercado do futebol, especialmente ao inflacionar o valor de transferências e salários dos jogadores. Isso provoca um desequilíbrio que afeta gravemente a competitividade de ligas tradicionais, como as europeias.

Os investimentos agressivos da Arábia Saudita e do Catar, sem consideração pelos princípios de justiça desportiva, estão a alterar a natureza do futebol. Clubes com tradições fortes e identidades locais estão a ser comprados por oligarcas ou fundos soberanos, muitas vezes com laços profundos a governos autoritários. O Newcastle United é apenas um dos muitos clubes europeus a sucumbir ao capital do Golfo, criando um precedente onde o futebol é transformado num veículo de manipulação política, em vez de um desporto apaixonante e meritocrático.

O perigo desta abordagem não reside apenas na entrada de vastas quantias de dinheiro, mas na sua origem. Os fundos utilizados para comprar clubes ou contratar jogadores de renome provêm, muitas vezes, das riquezas geradas por regimes opressores, que exploram os seus cidadãos e violam direitos humanos. O futebol, um desporto que historicamente mobiliza milhões de adeptos e une culturas, está a ser cooptado como um instrumento de regimes que procuram legitimar as suas políticas repressivas aos olhos do mundo.

O Desprezo pelos Direitos Humanos

A questão dos direitos humanos é um dos pontos mais críticos nesta análise. Tanto a Arábia Saudita como o Catar têm sido alvo de escrutínio internacional pelo seu tratamento desumano dos trabalhadores migrantes, a principal força de trabalho que constrói os seus projetos faraónicos. No caso do Catar, as mortes de trabalhadores durante a construção dos estádios para o Mundial de 2022 expuseram a dura realidade por detrás do brilho dos grandes eventos desportivos.

Estes trabalhadores, oriundos de países como Nepal, Bangladesh e Índia, são submetidos a condições de trabalho abusivas, onde muitas vezes têm de suportar temperaturas superiores a 40ºC, jornadas de trabalho longuíssimas e salários miseráveis. O sistema de kafala, que ainda predomina em grande parte da região do Golfo, permite que os empregadores tenham controlo quase total sobre a vida dos trabalhadores, restringindo a sua mobilidade e negando-lhes direitos básicos.

Na Arábia Saudita, apesar das reformas anunciadas, como a concessão de alguns direitos limitados às mulheres, o regime continua a reprimir severamente qualquer dissidência. As execuções públicas, muitas vezes por decapitação, são uma prática comum, e os críticos do governo enfrentam duras penas de prisão ou, em alguns casos, desaparecimentos forçados. Em vez de enfrentarem estas questões, os regimes saudita e catariano optam por desviar a atenção internacional através do desporto, tentando transformar-se em "centros globais" de futebol para criar uma narrativa de modernidade e progresso que não reflete a realidade no terreno.

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O Oportunismo Político e Económico no Desporto

A ascensão da indústria do futebol na Arábia Saudita e no Catar também se insere num quadro mais amplo de estratégias económicas e políticas. Ambos os países, conscientes da sua dependência do petróleo e do gás, procuram diversificar as suas economias através de setores como o turismo e o entretenimento. O futebol, com o seu apelo global e potencial económico, é uma das áreas privilegiadas para essa diversificação.

No entanto, esta aposta no futebol parece ser impulsionada por um oportunismo cínico. Em vez de promoverem o desenvolvimento do desporto a nível local, criando uma cultura desportiva sustentável e inclusiva, os governos destes países estão mais interessados em usar o futebol como uma forma de melhorar a sua reputação global e atrair investimentos estrangeiros. A falta de um verdadeiro investimento no futebol de base, que poderia beneficiar as populações locais, é um indicador claro de que o interesse pelo futebol é meramente instrumental.

O Futebol como Ferramenta de Controle e Manipulação

Em última análise, a ascensão da indústria do futebol na Arábia Saudita e no Catar revela-se uma ferramenta de manipulação política. O desporto, que deveria ser um espaço de inclusão, fair play e paixão, está a ser utilizado para desviar a atenção de questões mais prementes, como a violação dos direitos humanos, a repressão política e a falta de liberdades. Embora estes países consigam atrair a atenção global e projetar uma imagem de modernidade e sucesso através do futebol, a realidade no terreno conta uma história muito diferente.

O que está em jogo não é apenas o futuro do futebol, mas também o papel que o desporto desempenha numa era em que regimes autocráticos utilizam os seus vastos recursos para manipular a narrativa global. Em vez de glorificarem esta nova era dourada do futebol no Golfo, as atenções deveriam estar voltadas para os sacrifícios humanos e as injustiças que se escondem por detrás do brilho dos estádios de última geração.

A Arábia Saudita está a queimar o futebol como Ferramenta de Controle e Manipulação