Capitalismo Digital
Este é o primeiro texto de uma trilogia sobre a economia digital e suas consequências.
Leia os três textos para ficar com uma visão completa sobre o tema.
por Simon Ben-David
Introdução
Nas últimas décadas, o mundo assistiu a uma transformação radical nas suas estruturas económicas e sociais, à medida que o capitalismo digital se tornou a força dominante na economia global. Esta forma de organização económica, centrada em tecnologias digitais, plataformas online e a monetização de dados, não só redefiniu a forma como consumimos e interagimos, mas também introduziu novos desafios e crises. O capitalismo digital é muitas vezes retratado como um modelo inovador que democratiza o acesso a produtos e serviços, mas, ao mesmo tempo, esconde profundas desigualdades e explorações que afetam o trabalho, a privacidade e a própria natureza da democracia.
O Que é o Capitalismo Digital?
O capitalismo digital refere-se a uma forma de organização económica em que a produção de valor está intimamente ligada a tecnologias digitais e a plataformas online. Empresas como Google, Facebook, Amazon, Microsoft e Apple são alguns dos principais atores desta nova era. Estas empresas acumulam riqueza, poder e influência através da coleta, processamento e monetização de dados, produtos digitais e serviços online.
O que distingue o capitalismo digital do capitalismo industrial tradicional é a centralidade da informação e dos dados. Se, na era industrial, o valor era criado principalmente através do trabalho físico e da transformação de matérias-primas, no capitalismo digital, o valor é criado através da manipulação de informação e da interconexão de pessoas e sistemas via plataformas digitais. O principal recurso do século XXI não é o petróleo, mas os dados.
A Lógica do Capitalismo Digital
O capitalismo digital, diferentemente do capitalismo tradicional, é movido por algo invisível, mas incrivelmente valioso: os dados. Os dados são recolhidos, analisados e vendidos em tempo real por grandes corporações digitais, que capitalizam sobre cada clique, pesquisa ou interação feita online. Plataformas como Google, Facebook, Amazon e Apple monopolizam mercados, controlam fluxos de informação e moldam o comportamento dos utilizadores de maneiras que, muitas vezes, escapam ao escrutínio público.
Nesta nova economia, o capital intangível — dados, algoritmos e plataformas — substituiu os ativos físicos e tangíveis que dominavam o capitalismo industrial. As grandes empresas tecnológicas não produzem necessariamente bens físicos, mas controlam as infraestruturas através das quais os bens e serviços são distribuídos e consumidos. Isso dá-lhes uma vantagem competitiva avassaladora, criando novos monopólios digitais. O capitalismo digital trouxe consigo inovações e melhorias em várias áreas. A conectividade global permitiu que empresas atingissem mercados em todo o mundo, democratizando o acesso a informação e possibilitando a criação de novos negócios com barreiras de entrada muito menores do que no passado. Ao mesmo tempo, o consumidor tem acesso a uma variedade incrível de produtos e serviços, muitas vezes a preços mais baixos, devido à competição digital.
O impacto que a pandemia teve na economia digital
A COVID-19 teve sobre a economia de quase todos os países om impacto tremendo, pelas limitações que impôs. Com a necessidade de distanciamento social, as empresas de todo o mundo aceleraram os seus processos de transformação digital. A digitalização passou a ser uma questão de sobrevivência no mercado, algo confirmado por diversos estudos e análises globais.
Por exemplo, um relatório da McKinsey & Company revelou que a pandemia acelerou em três a quatro anos a adoção de tecnologias digitais pelas empresas, como o e-commerce, o trabalho remoto e a automação. Este crescimento foi notável em diversos setores, especialmente nas empresas tecnológicas, que viram o seu valor aumentar significativamente.
Em 2016, cerca de 15,5% do PIB mundial derivava da economia digital. A previsão é que, até 2025, esta percentagem suba para 25% do PIB global, refletindo a crescente dependência das tecnologias digitais. De acordo com um inquérito global da KPMG, 67% dos CEOs afirmaram que aceleraram os seus investimentos em novas tecnologias durante a pandemia, enquanto 63% disseram estar a reavaliar as suas estratégias digitais para se adaptarem às novas exigências do mercado. Estes dados mostram claramente a relação profunda entre inovação e economia digital. A rápida adoção da tecnologia permitiu que muitas empresas sobrevivessem durante a crise pandémica, reorganizando-se em torno de soluções digitais.
No cenário pós-pandemia, esta relação visa agora aumentar a produtividade e explorar novas oportunidades de crescimento nas organizações.
As Características do Capitalismo Digital
1. Plataformização
Uma das principais características do capitalismo digital é a "plataformização" da economia. Empresas como Uber, Airbnb e Spotify exemplificam este fenómeno, em que plataformas digitais conectam diretamente consumidores e prestadores de serviços. Estas plataformas não possuem diretamente os ativos físicos (ex.: carros, imóveis, música), mas facilitam o acesso a eles, lucrando ao intermediar essas transações.
2. Monopólios Digitais
O capitalismo digital deu origem a novos monopólios que controlam vastas partes da economia global. Empresas tecnológicas como Google e Amazon são exemplos de monopólios digitais que dominam os mercados através da centralização do poder de dados, economias de escala e influência global. O resultado é um ambiente de concorrência altamente desigual, onde pequenas empresas têm dificuldade em competir.
3. Economia de Dados
No coração do capitalismo digital está a economia dos dados. Empresas tecnológicas capturam, analisam e utilizam os dados dos utilizadores para gerar receitas, muitas vezes através de publicidade direcionada ou vendas de perfis de consumo. A coleta massiva de dados pessoais levanta questões éticas sobre privacidade, segurança e o consentimento dos utilizadores.
Críticas ao Capitalismo Digital
1. Concentração de Poder e Monopólios Tecnológicos
O capitalismo é e sempre foi imparável e obviamente, historicamente tem trazido dinâmicas de transformação que não podemos ignorar. Porém não está isento, de criticas urgentes e significativas. Assim, o capitalismo digital, tem dado origem a uma concentração de poder sem precedentes. Gigantes tecnológicos como a Google, Amazon, Meta e Microsoft controlam partes significativas da infraestrutura digital global. Este domínio permite-lhes definir as regras do jogo económico, influenciar políticas públicas e manter um controlo absoluto sobre os dados dos utilizadores.
Estes monopólios são muitas vezes descritos como plataformas gatekeepers, que são grandes empresas ou plataformas digitais que atuam como "guardas de portão" (do inglês gatekeepers) na economia digital, controlando o acesso a mercados digitais ou a certos serviços essenciais, tornando-se intermediárias essenciais para os utilizadores e para os negócios que pretendem operar online.. Este nível de concentração de poder representa uma séria ameaça à concorrência, pois dificulta a entrada de novos players no mercado e suprime a inovação. Ao mesmo tempo, essas empresas tornam-se tão poderosas que a capacidade dos governos para regulamentá-las eficazmente é limitada. A falta de alternativas no mercado significa que os consumidores têm pouca escolha senão submeter-se às práticas muitas vezes duvidosas dessas corporações. Em 6 de setembro de 2023, a Comissão Europeia designou pela primeira vez seis gatekeepers - Alphabet, Amazon, Apple, ByteDance, Meta, Microsoft - ao abrigo da Lei dos Mercados Digitais (DMA). Em 29 de abril de 2024, a Comissão designou a Apple, no que diz respeito ao seu iPadOS, o seu sistema operativo para tablets, como a empresa que controla este sistema. Em 13 de maio de 2024, a Comissão também designou, no âmbito do DMA, a Booking como controlando do seu serviço de intermediação em linha Booking.com. No total, foram designados 24 serviços essenciais de plataforma prestados por esses controladores de acesso.
2. A Nova Exploração do Trabalho: A Economia Gig e a Precariedade Laboral
O terceiro texto trata e desenvolve este tema. Uma das consequências mais visíveis do capitalismo digital é a criação de novas formas de trabalho precário, exemplificadas pela "economia gig" (ler o texto 3 da trilogia de artigos sobre este tema). Plataformas como Uber, Deliveroo e Airbnb oferecem aos trabalhadores flexibilidade, mas essa flexibilidade tem um preço. Muitos desses trabalhadores não possuem contratos formais, não têm acesso à segurança social ou seguro de saúde, e frequentemente enfrentam condições de trabalho instáveis e rendimentos imprevisíveis.
Ao contrário da promessa inicial de que o capitalismo digital democratizaria o acesso ao trabalho e às oportunidades, esta tem-se mostrado um sistema que beneficia desproporcionalmente os detentores das plataformas, mas marginaliza os trabalhadores. Estes são frequentemente tratados como prestadores de serviços independentes, libertando as plataformas de qualquer responsabilidade social ou laboral para com eles. A fragmentação do trabalho e a ausência de direitos laborais conduzem a uma exploração moderna, onde os trabalhadores são substituíveis e as suas condições são definidas por algoritmos que gerem a produtividade.
3. A Vigilância e a Erosão da Privacidade
O segundo texto trata e desenvolve este tema. Uma das críticas mais profundas ao capitalismo digital está relacionada com a forma como as empresas tecnológicas recolhem e utilizam dados pessoais. No coração deste sistema está uma lógica de vigilância massiva, onde os comportamentos dos utilizadores são monitorizados, registados e vendidos a terceiros para fins de publicidade e outros usos comerciais.
O que começou como um modelo de negócios centrado em anúncios personalizados rapidamente evoluiu para um sistema de capitalismo de vigilância, onde cada aspeto da vida humana — desde preferências de consumo até tendências políticas — é monitorizado e manipulado para gerar lucro. Esta recolha incessante de dados levanta questões éticas sérias sobre o consentimento dos utilizadores, a privacidade e o controlo individual sobre a própria identidade digital.
A capacidade das plataformas digitais de extrair informação sobre os utilizadores sem o seu conhecimento pleno cria um desequilíbrio de poder. As pessoas tornam-se mercadorias, produtos a ser vendidos aos anunciantes e a outras entidades. Este nível de vigilância leva também a questões mais amplas sobre o papel das corporações tecnológicas em moldar o comportamento social e até a democracia.
4. A Democratização da Informação ou a Manipulação da Realidade?
Se, por um lado, o capitalismo digital prometia democratizar o acesso à informação, o que estamos a assistir é algo bem diferente: manipulação e controle da realidade. Plataformas como Facebook e YouTube têm-se tornado os principais meios de distribuição de informação, muitas vezes sem responsabilidade editorial, permitindo que desinformação, teorias da conspiração e discursos de ódio floresçam.
A combinação de algoritmos de recomendação e publicidade personalizada cria "bolhas informativas", onde os utilizadores são continuamente expostos a conteúdos que reforçam as suas crenças pré-existentes, independentemente da veracidade desses conteúdos. Isso tem um impacto direto na coesão social e na política, contribuindo para a polarização, a radicalização e a disseminação de fake news.
5. O Impacto Ambiental da Digitalização
Embora o capitalismo digital seja frequentemente visto como menos intensivo em termos de recursos naturais comparado com o capitalismo industrial, a verdade é que carrega um custo ambiental significativo. A infraestrutura que suporta a economia digital — centros de dados, servidores e dispositivos tecnológicos — requer grandes quantidades de energia. A extração de minerais raros para a produção de smartphones, computadores e outros gadgets tecnológicos causa danos irreparáveis ao meio ambiente, além de alimentar conflitos em várias partes do mundo, como é caso do Congo que é a principal fornecedora mundial de minério de cobalto, essencial para o fabrico de equipamentos digitais.
Além disso, o desperdício eletrónico (e-waste) tornou-se um problema crescente. Dispositivos obsoletos ou inutilizados muitas vezes acabam em aterros sanitários, onde os seus componentes tóxicos poluem o solo e as águas, causando problemas de saúde pública e ambientais graves. O consumo desenfreado de dispositivos tecnológicos incentivado pelo capitalismo digital não é sustentável a longo prazo e contribui diretamente para a crise ambiental global.
Regulamentação e Responsabilização
Uma das primeiras medidas necessárias é uma regulamentação mais rigorosa. Governos em todo o mundo precisam de aumentar o escrutínio sobre as práticas empresariais das grandes corporações digitais, não só em termos de concorrência, mas também em termos de proteção de dados, direitos laborais e tributação. Iniciativas como o Regulamento Geral de Proteção de Dados (RGPD) na União Europeia são um começo, mas há ainda muito a ser feito, especialmente no que diz respeito ao controle sobre a utilização de dados pessoais. Precisamos de reconstruir o que significa trabalhar na economia digital. O trabalho digno deve ser uma prioridade, com normas laborais claras que protejam os direitos dos trabalhadores e garantam condições justas de remuneração. A economia gig não pode continuar a ser um refúgio para a exploração sem consequências. A sindicalização e a proteção legal dos trabalhadores digitais serão fundamentais para reequilibrar as relações de poder entre plataformas e prestadores de serviços.
Outra solução seria fomentar o desenvolvimento de plataformas descentralizadas que não concentrem tanto poder em poucas mãos. Tecnologias como o blockchain oferecem o potencial para criar modelos alternativos de governança digital, onde os utilizadores tenham maior controlo sobre os seus próprios dados e interações.
O Futuro do Capitalismo Digital
À medida que o capitalismo digital continua a evoluir, é provável que vejamos um aprofundamento das suas dinâmicas e uma maior interconexão entre o mundo físico e digital. Inovações como a inteligência artificial (IA), a Internet das Coisas (IoT) e a blockchain estão a abrir novas fronteiras para a criação de valor e a reformulação das economias digitais. Contudo, também será essencial enfrentar os desafios estruturais que o capitalismo digital apresenta. A regulamentação adequada, a proteção dos direitos dos trabalhadores e o combate às desigualdades serão fundamentais para garantir que a economia digital seja sustentável e justa. Governos, instituições e sociedade civil terão de trabalhar em conjunto para equilibrar os benefícios da inovação tecnológica com a proteção dos direitos fundamentais. O desafio será garantir que o capitalismo digital não seja apenas uma nova forma de exploração e concentração de riqueza, mas sim uma ferramenta para melhorar a vida de todos. A consciencialização desta realidade passa e muito pelos utilizadores das redes sociais e outras. Passa pelo leitor deste artigo. Não esquecer.
Conclusão
O capitalismo digital representa um ponto de inflexão nas estruturas económicas e sociais globais. Embora tenha trazido benefícios consideráveis, como a democratização do acesso à tecnologia e serviços inovadores, também tem aprofundado desigualdades, explorado trabalhadores e erodido a privacidade individual. À medida que avançamos para o futuro, será crucial encontrar maneiras de mitigar os impactos negativos deste sistema, garantindo que a digitalização e a inovação tecnológica sejam utilizadas para o bem comum, e não apenas para o lucro de alguns poucos.
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